09 dezembro 2019

DESIGUAL

J.R. Guzzo - O Estado de S.Paulo - 8 de dezembro de 2019

Vamos combinar uma coisa, desde já: ainda não foi inventada neste mundo uma maneira mais eficaz de concentrar renda, preservar a pobreza e promover a desigualdade do que negar ao povo jovem uma educação decente – apenas decente, só isso. Vamos combinar mais uma coisa: só há uma chance na vida de adquirir os conhecimentos básicos para a melhoria da condição social de quem nasceu pobre, e essa chance é a escola básica.

Se for perdida, ela não volta nunca mais; é perfeitamente inútil ficar falando em “resgate da pobreza”, “ascensão social”, “mais igualdade” e outros requisitos para um “mundo mais justo” depois que o garoto saiu da escola e não aprendeu o que deveria ter aprendido. Não é preciso ser nenhuma Finlândia, Cingapura e outros parques temáticos sociais que enfeitam nosso planeta. Basta o cidadão aprender o suficiente para fazer as operações essenciais da matemática, distinguir física de química e entender o que leu numa página escrita em linguagem corrente.
Há um acordo geral sobre essas realidades? Se houver, é bom já ir se acostumando com o seguinte fato: praticamente todas as ideias que circulam por aí para melhorar o Brasil são a mais pura e lamentável perda de tempo.
O que adianta esquentar a cabeça discutindo se o deputado Rodrigo Maia vai salvar a República dos perigos da “polarização”? Ou se os gigantes da nossa “engenharia política”, seja isso lá o que for, vão bater um suco de Lula com Luciano Huck, misturar tudo o que há no meio, e tirar daí o segredo do centro-esquerda-moderado-sociológico-popular que vai levar os 200 milhões de brasileiros direto para o céu? Adianta três vezes zero.
Não vai adiantar nunca, quando ninguém mais se lembra, entre todos os condes e viscondes da política e das classes intelectuais deste País, da calamidade social que nos foi anunciada há menos de uma semana. Que calamidade? Coisa simples: na última e mais respeitada avaliação da qualidade da educação no mundo, feita em 2018 em 79 países, o Brasil ficou entre os 20 piores. Nossos jovens, para resumir a ópera, não sabem nada de matemática, ciências e leitura – ou nada que preste para alguma coisa realmente útil. Não há horizonte viável num país assim, é claro. Mas como ninguém está ligando, é assim que o País vai continuar. 
Mudar como, se a elite que se diz responsável, pensante e equilibrada continua achando que o grande problema da educação no Brasil é o ministro Weintraub? Que diabo ele tem a ver com o desastre dos últimos 30 ou 40 anos – mesmo que seja o pior ministro de Educação do mundo?
Vamos continuar nos queixando, nas mesas-redondas de televisão e nas palestras para empresários, que o Brasil é um país injusto, que temos de “distribuir renda”, que é preciso dialogar com as “comunidades”, etc. etc – mas ninguém quer ensinar a moçada a somar fração, perceber o que é um átomo ou entender o que está escrito num texto de quinze linhas, mesmo porque há uma multidão que não sabe escrever um texto de quinze linhas.
É inútil, como fazem nove entre dez políticos, comunicadores e cientistas sociais, querer que as pessoas tenham igualdade nos resultados quando não são iguais nos méritos. Não há como ser igual nos méritos, ao mesmo tempo, se o sujeito que sabe menos não teve oportunidades iguais de aprender as coisas que foram aprendidas pelo sujeito que sabe mais.
É tolo supor que quem sabe menos pode ganhar o mesmo que quem sabe mais, ou ter as mesmas recompensas na vida – tão tolo como achar que você vai ser contratado pelo Real Madrid porque joga futebol com a turma do prédio. A igualdade não é um direito – é o resultado do que o cidadão aprendeu. Não há “políticas públicas”, nem “vontade política”, que possam resolver isso.
Venezuela: uma tragédia do século XXI

1964 - O Brasil entre armas e livros


O TEATRO DAS TESOURAS
EPISÓDIO 1 - 1989

O TEATRO DAS TESOURAS
EPISÓDIO 2 - 1994

O TEATRO DAS TESOURAS
EPISÓDIO 3 - 1998

O TEATRO DAS TESOURAS
EPISÓDIO 4 - 2002

O TEATRO DAS TESOURAS
EPISÓDIO 5 - 2006

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EPISÓDIO 6 - 2010

O TEATRO DAS TESOURAS
EPISÓDIO 7 - 2014

A ÚLTIMA CRUZADA
Episódio 1 - A cruz e a espada

A ÚLTIMA CRUZADA
Episódio 2 - A Vila Rica

A ÚLTIMA CRUZADA
Episódio 3 - A guilhotina da igualdade

A ÚLTIMA CRUZADA
Episódio 4 - Independência ou morte

A ÚLTIMA CRUZADA
Episódio 5 - O último reinado



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A ÚLTIMA CRUZADA
Episódio 6 - Era Vargas: O Crepúsculo de um Ídolo

15 fevereiro 2017

INVENÇÕES BRASILEIRAS INJUSTIÇADAS

WALKMAN
Andreas Pavel - 1977


Andreas Pavel
A história de Andreas Pavel é uma prova de que a vida de inventor brasileiro não é fácil. Pelo menos até ter reconhecido seus direitos. Para Pavel conseguir isso, ele teve de gastar US$ 3 milhões com advogados e esperar 27 anos. E isso porque a sua não era uma invenção qualquer. Era nada menos do que o Walkman, um dos aparelhinhos mais vendidos do mundo, que Pavel diz ter apresentado a empresas como Yamaha e Phillips.

Até há pouco tempo, ele era tido como criação da Sony, que registrou a marca. Mas, na verdade, o Walkman nasceu em São Paulo, em 1972. Fã de Janis Joplin e Orlando Silva, Pavel o criou a partir de fones de ouvido e gravadores, que ele modificava. Depois de pronto, ele o batizou de "pequeno equipamento de fixação corpórea para a reprodução de eventos auditivos em alta qualidade" ou Stereobelt.

STEREOBELT

Embora Pavel tivesse patenteado sua invenção na Itália, em 1977, e na Alemanha, Inglaterra e EUA, em 1978, a Sony ignorou a lei e lançou o Walkman com sucesso estrondoso em 1979. Foram vendidas mais de 200 milhões de unidades.

Pavel resolveu ir atrás de sua parte. Contra a expectativa de muitos, conseguiu provar a autoria da invenção e assinar com a Sony um acordo de valor não revelado, mas que, segundo estimativas do mercado, pode chegar a US$ 10 milhões. Ele ganhou também uma patente nos Estados Unidos sobre os aparelhos celulares com rádio estéreo e os telefones de terceira geração, com MP3, que lhe renderão royalties até 2021.


IDENTIFICADOR DE CHAMADAS (BINA)
NÉLIO NICOLAI – 1982

Nélio José Nicolai
Bina é a sigla de "B Identifica Número A". Esta tecnologia, capaz de identificar o número telefônico de quem faz e recebe ligações, foi criada em 1977 pelo eletrotécnico mineiro Nélio José Nicolai. Trata-se do invento brasileiro mais utilizado no mundo.

A primeira tecnologia do identificador de chamadas, surgida no ano de 1977, foi patenteada em 1980, quando Nicolai trabalhava na Telebrasília, operadora local da Telebrás, antiga holding estatal de prestação de serviços telefônicos.

A Telebrasília não o incentivou a desenvolver a ideia por uma razão que hoje pode parecer piada: a estatal achava que identificar o número de quem fazia a chamada seria uma invasão de privacidade.

Mesmo assim, Nélio registrou, em 1980, a patente da primeira versão do Bina.

A ideia do bina surgiu quando o brasileiro tentava resolver o problema de uma antiga brincadeira juvenil: os trotes telefônicos. Para testar, ele adaptou ao aparelho uma calculadora, que mostrava o número no visor e o imprimia em uma bobina.

Dois anos depois, o destino facilitaria sua primeira aplicação prática. “Eu alugava apartamento em um prédio em que moravam alguns oficiais dos bombeiros, que reclamavam muitos dos trotes no 193. Acabei convencendo-os a fazer uma experiência”, diz Nicolai. Para eles, fugir de trotes era algo muito mais importante do que questões de privacidade. Os quatro aparelhos instalados na central 193 foram produzidos em 1982, por sua primeira empresa, a Sonintel. Era um aparelho pouco maior do que uma caixa de sapato, com cerca de 600 gramas, conectado ao telefone.

Depois disso, o invento foi parar em um seminário do Ministério da Desburocratização, e a imprensa o descobriu. “Aí, minha vida começou a mudar. Já não conseguia mais esconder o Bina”, lembra o pai da criança. Seus problemas com a paternidade do dispositivo estavam apenas começando.

Em 1984, a empresa de telefonia Bell Canada enviou representantes ao Brasil para estabelecer uma parceria com a Telebrasília, de olho no Bina. Naquele ano, ele foi demitido da estatal. Antes e depois de sair, no entanto, visitou a empresa algumas vezes, para ajudar na montagem de um protótipo. A colaboração não foi para frente. Ou foi, porque, dois anos depois, surpresa: a Bell anunciou o desenvolvimento de um identificador de chamadas, lançado em 1988. Nicolai não recebeu nenhum crédito pelo produto.

Durante os anos 1980, as centrais telefônicas se modernizaram e Nicolai inventou uma nova versão do dispositivo, cuja patente seria solicitada em 1992 e aprovada em 1997, quando o inventor assinou contratos de licença de exploração da patente com a sueca Ericsson para instalar e comercializar o Bina no Brasil por dois anos. Ele transferiu a tecnologia e, quando foi às telefônicas cobrar o pagamento de royalties, outra surpresa. “Avisaram que não me pagariam. Me mandavam ir à Justiça e, quem sabe, meus bisnetos veriam alguma coisa”.

Consultado pela Justiça, o INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial) disse que a patente não era válida e, depois, voltou atrás. Diante da confusão, a Justiça encomendou um laudo independente. Enquanto esse processo não é decidido, as outras ações estão paralisadas, desde 2005, mesmo que, por lei, um processo só possa ficar suspenso por um ano.

Se Nicolai vencer, a Justiça terá outro trabalho complicado: decidir o valor da indenização, que possivelmente seria a maior já paga do país. No Brasil, uma patente tem validade de 20 anos. O valor pago por ela é um percentual – variável – do total arrecadado com o serviço ou produto que ela descreve. Nas ações, o brasileiro pede 25%. A base de cálculo seria o faturamento das empresas de telefonia com o Bina ao longo de 20 anos. E alguém paga pela identificação de chamadas? Hoje, quase ninguém. Mas nem sempre foi assim. O valor do Bina vinha discriminado nas contas (a tarifa média praticada era de R$ 10 por mês). Depois, as telefônicas passaram a usar 'identificação de chamadas' e, afinal, pararam de citar a cobrança na fatura.

Nos últimos 10 anos, Nicolai vendeu casas, carros e até cotas de uma eventual indenização para pagar advogados e processar dezenas de empresas de telefonia. Ele já ganhou 3 ações em primeira instância e uma em segunda. Se vencer a enxurrada de recursos que os réus usam para protelar a decisão final, pode receber uma quantia bilionária, que o colocaria entre os homens mais ricos do mundo.

A título de exemplo, seu advogado faz as contas usando uma taxa de 20% de royalties e chega ao resultado de R$ 113 bilhões. Com juros e correção monetária, o valor chegaria a cerca de R$ 185 bilhões. Para se ter uma ideia, essa fortuna faria do brasileiro o homem mais rico do mundo. O valor pode parecer exagerado, absurdo, mas no único processo já vencido por Nicolai, em que a Justiça já arbitrou a indenização, o valor foi de R$ 550 milhões. A ação era contra a Americel, subsidiária da Claro. Como o inventor processa 40 companhias, e essa é uma das menores da lista, as cifras provavelmente chegariam mesmo às dezenas de bilhões de reais.

Uma informação indica que Nicolai tem chance de levar a fatura. E ela vem, justamente, da maior empresa processada por Nicolai – a Vivo. A ação contra a Vivo é de aproximadamente R$ 5 bilhões, o que faz do processo a maior causa de indenização sobre propriedade industrial dos tribunais brasileiros. Como tem ações na Bolsa de Nova York, a companhia é obrigada a apresentar relatórios à Comissão de Valores Mobiliários dos EUA, com informações sobre, entre outras coisas, o risco de perder processos. No relatório de 31 de março de 2010 está escrito: “Acreditamos, com base no parecer de nossos consultores jurídicos externos, que a probabilidade de um resultado desfavorável é possível”.

14 fevereiro 2017

RESPEITO

Num casamento, como na vida, todo e qualquer feito pode ser bem feito ou malfeito, tanto no eito como no leito.

Com isso, fica-se ora satisfeito, ora insatisfeito, como em todo o pleito, mas, havendo amor, perfeito, imperfeito ou rarefeito, sempre se dá um jeito.

O importante é não ficar contrafeito diante de qualquer defeito, seja suspeito ou de direito.


Melhor tirar o máximo proveito de qualquer pequeno efeito, ainda que estreito, rendendo o preito e ofertando o confeito que merece o sujeito, pois que é o seu eleito, aceito dentro de seu peito como um amor-perfeito.

RESPEITO

Respeito é bom, e eu gosto!, diz o dito popular. Mas o que é Respeito?

Para definir o que seja Respeito, e discutir a sua importância, seja no casamento, seja na vida em geral, uma boa solução é conhecer o que seria o seu contrário ou a sua ausência.

O contrário do Respeito é o Desrespeito; a sua ausência, a Falta de Respeito.

Quem desrespeita revela desconsideração, uma espécie de desprezo, de negação do espaço, da individualidade do outro.

Faltar com o respeito devido a alguém é o mesmo que admitir que não o admiramos, que não enxergamos nada que mereça a nossa consideração. É negar os seus valores, a sua história, a sua personalidade.

Em alguns casos, essa negação ou essa ausência denuncia um despeito oculto em relação ao outro, uma rivalidade, uma competição daninha que, pouco a pouco, esteriliza o campo onde deveria florescer a amizade, o companheirismo, a cumplicidade... o amor.

No casamento, o desrespeito ou a falta de respeito tem as mesmas propriedades de um ácido (cáustico, corrosivo, venenoso), de um fungo (cuja nutrição se dá por absorção), de uma bactéria (que parasita e decompõe).

E o Respeito, o que seria?

Nada parecido com obediência, acatamento, medo ou receio. Essa é a deformação do Respeito, o temor reverencial, em que um dos pólos se subjuga, anula-se frente ao seu oposto.

Nada a ver com a admiração basbaque, pois como bem disse o Padre Antônio Vieira: A admiração é filha da ignorância, porque ninguém se admira senão das coisas que ignora”.

Portanto, o respeito tem tudo a ver com a consideração, que é a estima, o afeto que passamos a ter por algo ou alguém após exame detido, análise refletida, ponderação decantada pelo tempo, ou seja, por algo ou alguém que se conhece, que não se ignora.

Admiramos com o coração, mas respeitamos com a razão.

Respeitar, então, seria admirar aquilo que conhecemos, valorizando atos e ações, aceitando erros e defeitos, compreendendo falhas e deslizes, pois tudo isso faria parte daquele conjunto que passamos a admirar, considerar, estimar.

Respeitar também é não forçar a alma do outro sem o seu consentimento. Nem para mudá-la a fórceps, nem para mantê-la congelada in vitro. Respeitar é deixar livre o caminho para o crescimento pessoal, sem que o despeito se rebele contra a ascensão do outro.

Respeitar é sentir prazer com o êxito do outro, regozijar-se com a realização do outro.

Respeitar é preservar a intimidade e zelar pela imagem do parceiro.

Respeitar é dar atenção, preservando a individualidade. É dar carinho, preservando a independência. É dar amor, preservando o espaço.

Respeitar é admirar mesmo as imperfeições do outro, é compreender e aceitar o que há de precário no outro.

Mais do que com o coração, com os sentidos, com a carne, respeitar é amar com alma.

É poder dizer: “Te amo por quem tu és, mas ainda mais por quem sou quando estou contigo”.

19 janeiro 2016

A GRANDE APOSTA

O filme "A Grande Aposta" é ao mesmo tempo excelente e terrível.

Em termos de narrativa sobre uma bolha financeira, e de todas as manias que ela gera, o filme é espetacular. Mas em termos de analisar as reais causas dessa bolha ou mesmo de apresentar um caminho para soluções futuras, o filme é um desastre.

Aos espectadores do filme não é fornecida nenhuma informação explicativa sobre os verdadeiros fatores causadores da crise financeira. Nada é dito sobre as políticas monetárias e de crédito fácil do Federal Reserve (o Banco Central americano) e do próprio governo americano. Nada é dito sobre as todas as políticas criadas pelo governo americano (democrata – Bill Clinton) para facilitar e incentivar empréstimos para a aquisição de imóveis. O que ocorreu? Falta ou excesso de regulamentação?

Mas, apesar dessa falha gritante, há um ponto curioso: o filme sutilmente transforma especuladores em heróis. O filme, corretamente, mostra que especuladores são pessoas dispostas a correr altos riscos baseando-se em uma opinião majoritariamente contrária à opinião dominante, desta forma efetuando o valioso feito de moderar a exuberância quando esta se torna injustificada.

Sendo assim, é interessante constatar que a esquerda, que está vibrando com o filme, está explicitamente concedendo aos especuladores status de heróis. Que bom.

Estranhamente, o filme critica a ganância e a riqueza de Wall Street, mas acaba celebrando um punhado de especuladores espertos que ganharam bilhões de dólares apostando contra milhões de infelizes compradores de imóveis. Talvez de maneira não intencional, “A Grande Aposta” despreza décadas de retórica esquerdista contra os especuladores e os transforma em gênios quem merecem cada centavo de seus ganhos.
Mas vamos à uma boa e sucinta (ainda que longa) explicação sobre as verdadeiras origens da famigerada bolha dos subprimes...

Comecemos nossa análise com um gráfico que mostra o histórico da evolução dos preços dos imóveis americanos. Mais especificamente, o gráfico mostra a mediana dos preços de venda de imóveis novos.


O gráfico traz vários detalhes interessantes. Até o início da década de 1970, quando os EUA ainda viviam sob alguns resquícios de padrão-ouro, os preços dos imóveis permaneceram praticamente constantes. Durante a década de 1970, os preços praticamente duplicaram, mas isso foi efeito da alta inflação monetária ocorrida naquela década (que ficou conhecida como a década perdida dos EUA), e não especificamente de uma bolha. Já durante a década de 1980 houve um mini-bolha, a qual estourou no início da década de 1990 (aficionados por economia podem pesquisar sobre a retração do mercado imobiliário americano nesta época).

A partir de 1993, início do governo Clinton, os preços voltaram a subir continuamente. E aceleraram vertiginosamente a partir de 2001 até entrarem em colapso em 2008.

Logo, partindo-se deste gráfico, dois eventos devem ser analisados:

1) O que gerou a ascensão de preços a partir de 1993?

2) O que gerou a súbita aceleração a partir de 2003?

A DÉCADA DE 1990

Foi na década de 1990 que duas políticas governamentais voltadas exclusivamente para o setor imobiliário — mais especificamente, para aumentar o número de proprietários de imóveis — foram intensificadas. Digo "intensificadas" porque estas políticas já existiam desde a década de 1970, mas foi somente na década de 1990 que elas ganharam poder total.

Quais foram estas políticas?

FANNIE MAE E FREDDIE MAC

De um lado, havia duas empresas nominalmente privadas, mas que atendiam exclusivamente aos desejos do governo federal (familiar, não???). Estas duas empresas se tornaram mundialmente conhecidas em 2008, quando houve a quebradeira: trata-se da Federal National Mortgage Association (popularmente conhecida como Fannie Mae) e a Federal Home Loan Mortgage Corporation (popularmente conhecida como Freddie Mac).



Essas duas empresas foram criadas pelo Congresso americano e são oficialmente conhecidas como "empresas apadrinhadas pelo governo", pois usufruem vários privilégios concedidos pelo governo. Primeiro, vamos entender o que elas fazem; depois, veremos por que elas são assim conhecidas.

Fannie Mae e Freddie Mac são empresas voltadas exclusivamente para o mercado imobiliário. Mais especificamente, elas são empresas que existem para garantir liquidez ao mercado de hipotecas. Elas não emprestam dinheiro para compradores de imóveis; elas apenas compram estes empréstimos dos bancos.

Funciona assim: um americano vai a um banco comercial qualquer e pede um empréstimo para comprar um imóvel. Ato contínuo, o banco cria dinheiro eletrônico e acrescenta estes dígitos eletrônicos na conta do tomador de empréstimo, que agora utilizará este dinheiro para comprar um imóvel. Por uma questão de regra contábil, sempre que um banco concede um empréstimo, ele está criando um ativo e um passivo: o ativo é o valor do empréstimo, o passivo é o dinheiro que ele deu ao tomador de empréstimo.

Atenção, pois esta parte é crucial: se um banco concede um empréstimo, o valor do seu ativo aumenta. Quanto mais empréstimos ele concede, maior o valor do seu ativo (e, consequentemente, do seu passivo). Por uma questão de regulamentação bancária (tanto do Banco Central americano quanto do Banco da Basileia), há um limite para o crescimento destes ativos. Em termos técnicos, os ativos têm de manter uma proporção máxima em relação ao patrimônio líquido do banco. Portanto, um banco não pode sair concedendo empréstimos a rodo, pois ele rapidamente atingiria este limite determinado.

E é exatamente nesse ponto que Fannie e Freddie entram em cena. A função destas empresas era comprar dos bancos comerciais exatamente estes empréstimos (títulos hipotecários) que eles concediam para compradores de imóveis.

Ou seja: quando um banco comercial concedia um empréstimo imobiliário, ele colocava em seus ativos o valor total do empréstimo. Mas se ele vendesse esse ativo (título hipotecário) para uma terceira parte, este ativo sairia de seus livros contábeis, ele receberia de volta a quantia que emprestou (na verdade, receberia um valor mais alto) e, em seguida, estaria livre para voltar a fazer novos empréstimos sem ultrapassar aquele limite entre ativos e patrimônio líquido estabelecido pelo Banco Central.

Em resumo: Fannie e Freddie, ao comprarem as carteiras de empréstimos imobiliários dos bancos, permitiam que os bancos dessem continuidade aos seus empréstimos. Em outras palavras, após um banco conceder um empréstimo para um comprador de imóveis, ele podia vender este empréstimo para Fannie ou Freddie. Ato contínuo, este empréstimo não mais estaria nos livros contábeis do banco, o qual estaria agora livre para fazer novos empréstimos.

Uma vez em posse dos títulos hipotecários, Fannie e Freddie agora eram as responsáveis pelos empréstimos. A relação agora era entre elas e os tomadores de empréstimos imobiliários. Enquanto estes continuassem pagando suas hipotecas, Fannie e Freddie continuariam tendo um fluxo de caixa. Se os tomadores de empréstimos dessem o calote, Fannie e Freddie teriam enormes prejuízos. Seus títulos hipotecários seriam remarcados para um valor zero e o patrimônio líquido de ambas seria severamente afetado.

Observe que os bancos que fizeram os empréstimos originais estão fora da jogada. Eles não mais são os responsáveis pelo empréstimo e não mais lidam com o tomador do empréstimo. Eles estão livres para voltar ao mercado imobiliário e conceder novos empréstimos. Era uma espécie de moto-perpétuo.

FANNIE E FREDDIE
...tinham duas opções: elas podiam manter em suas carteiras os empréstimos que compraram dos bancos (e, assim, aufeririam as receitas) ou podiam empacotar esses empréstimos e vender para investidores ao redor do mundo. Esses empréstimos imobiliários vendidos por Fannie e Freddie para os investidores ao redor do mundo ficaram conhecidos como "títulos lastreados em hipotecas" (as famosas mortgage-backed securities).

Tradicionalmente, quando uma pessoa pega um empréstimo para comprar um imóvel, cria-se uma dívida entre ela e o banco. Se a pessoa irá honrar sua dívida ou não, é problema do banco. No cenário americano, Freddie e Fannie fizeram com que os bancos não mais se preocupassem com nada disso, pois eles sabiam que, tão logo concedessem um empréstimo imobiliário, Fannie e Freddie estavam lá para comprar este empréstimo a um valor acima do montante concedido.

Desnecessário dizer que todo este processo — ao facilitar enormemente a compra de imóveis — gerou muito mais empréstimos imobiliários do que normalmente ocorreria. Este direcionamento artificial de recursos para o mercado imobiliário aditivou os preços dos imóveis.

Freddie e Fannie usufruíam uma linha especial de crédito junto ao Tesouro americano, no valor de US$2,25 bilhões. Esta garantia implícita de proteção conseguiu atrair um contínuo financiamento de investidores — que investiam dinheiro nestas empresas e compravam seus títulos lastreados em hipotecas —, pois estes investidores sabiam que, caso a coisa degringolasse, Fannie e Freddie seriam socorridas pelo governo americano.

(Para se ter uma ideia da amplitude destas empresas, em setembro de 2008, quando o governo americano efetivamente nacionalizou ambas as empresas, elas detinham metade das hipotecas do país e praticamente 75% das hipotecas recém-concedidas.)

Por fim, vale ressaltar que Fannie e Freddie estavam profundamente envolvidas em politicagem. A Fannie, mais especificamente, foi utilizada por políticos democratas que queriam diminuir as exigências que a empresa impunha para conceder empréstimos a pessoas de mais baixa renda. Tudo em nome de estar ajudando os "necessitados" (familiar?). Em setembro de 1999, o The New York Times publicou uma reportagem dizendo que a Fannie Mae estava afrouxando as exigências de crédito para as hipotecas que ela comprava dos bancos.

Segundo o Times, a iniciativa era perigosa porque iria estender hipotecas para indivíduos cujo histórico de crédito não são bons o suficiente para se qualificarem para empréstimos convencionais. [...] A Fannie Mae tem estado sob intensa pressão do governo Clinton para dar sustentação a hipotecas de pessoas de renda baixa e moderada. [...] [Embora] as novas hipotecas sejam estendidas para todos os potenciais tomadores de empréstimos, [um dos objetivos do programa é] aumentar o número de proprietários de imóveis entre as minorias e os indivíduos de baixa renda, os quais tendem a apresentar um histórico de crédito pior que os dos brancos não-hispânicos.
Ao se aventurar, mesmo que temporariamente, nesta nova área de empréstimos, a Fannie Mae está assumindo riscos consideráveis. [...] Esta corporação subsidiada pelo governo pode vir a enfrentar problemas caso haja uma recessão econômica, o que levará o governo a socorrê-la.

Ou seja, até mesmo o The New York Times já havia percebido o risco envolvido nessa nova empreitada.

Não é o intuito deste artigo entrar em detalhes sobre o funcionamento de Freddie e Fannie, pois isso tomaria o espaço de um livro. Há uma ampla literatura dedicada exclusivamente ao assunto e nada do que foi dito aqui é controverso. Políticos democratas utilizaram estas agências para garantir que minorias e pessoas de baixa renda, sem nenhum histórico de crédito, conseguissem empréstimos para comprar a casa própria. Estas seriam as mesmas pessoas que, como veremos mais abaixo, começaram a dar calotes nos empréstimos.

CRA E AÇÕES AFIRMATIVAS

Mas apenas Fannie e Freddie não seriam capazes de estimular todo o mercado imobiliário, e muito menos o mercado subprime (subprime se refere a tomadores de empréstimo com histórico de crédito ruim). É aí que entra em cena a segunda política governamental: ação afirmativa para empréstimos.

Fannie e Freddie não eram as únicas entidades utilizadas para reduzir os padrões de empréstimos. Agências governamentais de vários tipos começaram a pressionar os bancos a fazerem empréstimos mais arriscados, e tudo em nome da "igualdade racial" (familiar?). Caso se recusassem a assumir este comportamento temerário, os bancos poderiam ser legalmente processados por discriminação e racismo.

Em 1992, um estudo feito pela sucursal do Federal Reserve de Boston afirmou ter encontrado claras evidências de que, mesmo levando-se em conta as diferenças na capacidade creditícia de cada indivíduo, as minorias recebiam menos empréstimos do que os brancos. Tal estudo foi considerado como definitivo por aqueles já dispostos a acreditar em sua conclusão: a saber, que os bancos americanos discriminavam negros e hispânicos — mas, curiosamente, não discriminavam os asiáticos, que recebiam ainda mais empréstimos do que os brancos.

Este estudo ressuscitou uma lei conhecida Community Reinvestment Act. Trata-se de uma lei criada ainda no governo de Jimmy Carter, no final da década de 1970, e que foi plenamente revigorada no governo Clinton. Esta lei deixou os bancos à mercê de processos por discriminação caso eles não emprestassem para minorias em um volume suficientemente alto, que satisfizesse as autoridades.

De acordo com as regras do Community Reinvestment Act (CRA), se um banco quisesse fazer qualquer alteração em suas operações comerciais — fusão, abertura de uma filial, entrada em uma nova linha de negócios —, ele deveria primeiro provar aos reguladores que ele, o banco, já fez uma quantidade "suficiente" de empréstimos aos mutuários preferidos do governo — no caso, minorias e pessoas de baixa renda.

E, a partir de 1995, o governo americano passou a pressionar os bancos para que fizessem empréstimos sem que pudessem verificar critérios minimamente prudentes, como histórico de crédito do tomador de empréstimo, seu histórico de poupança e a magnitude do pagamento da hipoteca em relação à sua renda. Os bancos não podiam nem sequer verificar a renda do mutuário. Adicionalmente, o Banco Central americano havia dito aos bancos que a simples participação deste mutuário em programas de aconselhamento de crédito, muitos dos quais são financiados com fundos federais, poderia ser usada como "prova" da capacidade desse mutuário de baixa renda honrar seus pagamentos hipotecários. Em outras palavras, os reguladores bancários federais exigiram que os bancos fizessem empréstimos ruins baseando-se em padrões de crédito inexistentes.

Vale novamente enfatizar que nada do que foi escrito até agora é matéria de controvérsia ou de dúvidas. Toda a literatura a respeito do CRA e das políticas de ação afirmativa impostas por este decreto são de conhecimento público.

A DÉCADA DE 2000 — A INTENSIFICAÇÃO DE TUDO

Até aqui, falamos apenas sobre duas políticas governamentais voltadas para estimular a aquisição de imóveis: as agências hipotecárias Fannie Mae e Freddie Mac, e o decreto CRA.

Estas duas políticas governamentais ajudam a explicar por que houve uma bolha imobiliária, mas elas por si sós não justificam toda a amplitude da bolha imobiliária. Adicionalmente, como mostrado no gráfico 1, foi só a partir da década de 2000 que os preços dos imóveis realmente dispararam. Por quê?

INCENTIVOS À ESPECULAÇÃO

Em primeiro lugar, é crucial entender a questão dos incentivos. A partir do momento em que os critérios exigidos para se conceder empréstimos imobiliários foram artificialmente relaxados por imposição do governo americano, e a partir do momento em que o próprio governo adotou políticas que estimulavam a aquisição de imóveis, foi apenas uma questão de tempo para que o setor imobiliário se tornasse um território propício à especulação.

O aumento na demanda por imóveis — estimulado pelo acesso artificialmente facilitado aos financiamentos — gerou um inevitável e contínuo aumento nos preços dos imóveis. Este aumento contínuo, por sua vez, produziu o "inesperado" efeito de atrair especuladores para o mercado imobiliário. Tornou-se extremamente comum um indivíduo adquirir um empréstimo, comprar uma casa, fazer alguns aprimoramentos nesta casa e, apenas um ano depois, revendê-la a um preço muito maior, entregando a hipoteca para o novo comprador que, seis meses depois, faria a mesma coisa que seu antecessor. Ou seja, comprar um imóvel havia virado um investimento altamente rentável e de ganho certo.

Aqueles que não compravam com a intenção de revender passaram a utilizar suas casas como um caixa eletrônico: sempre que o imóvel se valorizava, o indivíduo ia ao banco e, utilizando o novo valor da sua casa como colateral, negociava um novo empréstimo para gastar em bens de consumo, como carros e televisores de plasma.

Um arranjo como este perdura enquanto os preços dos imóveis estiverem em ascensão. Se os preços começarem a cair, duas coisas ocorrerão: a revenda do imóvel passará a dar prejuízo e o valor da hipoteca será maior do que o valor do imóvel, o que impedirá qualquer tipo de renegociação com os bancos e deixará o mutuário com um patrimônio negativo. Em suma, todo o esquema especulativo virá abaixo. E não apenas isso: dar o calote e abandonar o imóvel passará a ser a opção mais racional (e, como veremos mais abaixo, foi isso o que ocorreu no final da década.)

AGÊNCIAS DE CLASSIFICAÇÃO DE RISCO

Mas o que tornou possível essa contínua especulação? O que fez com que Fannie e Freddie fossem capazes de comprar e revender títulos lastreados em hipotecas ininterruptamente? Como dito acima, em setembro de 2008, ambas as empresas detinham metade das hipotecas do país e praticamente 75% das hipotecas recém-concedidas. De onde vieram os fundos que permitiram isso? Resposta: de duas fontes.

Em primeiro lugar, não se pode de modo algum ignorar a função deletéria exercida pelas agências de classificação de risco, como Moody's, Fitch e Standard & Poor's. Sem elas, a bolha imobiliária certamente teria sido menor. Qual foi o estrago que elas fizeram?

Para entender, voltemos àquele exemplo prático dado logo no início do artigo. Um americano típico, John Smith, vai a um banco qualquer e consegue um empréstimo para comprar um imóvel. Ato contínuo, este banco irá revender este empréstimo (que é um ativo) para Fannie e Freddie. Ambas terão a opção de ou manter este ativo ou revender este ativo. Na maioria das vezes, como mostram os números do parágrafo acima, elas mantinham este ativo em suas carteiras. Porém, em vários casos, elas empacotavam estes ativos e revendiam para investidores de todo o mundo, em sua esmagadora maioria grandes conglomerados financeiros e grandes bancos de investimento.

Bear Stearns, Lehman Brothers, Goldman Sachs, JPMorgan Chase, Merril Lynch, Morgan Stanley, Citibank, Bank of America eram os compradores americanos mais famosos, ao passo que Barclays, Royal Bank of Scotland e Northern Rock (Reino Unido), BNP Paribas e Société Générale (França), Credit Suisse e UBS (Suíça), e Deutsche Bank (Alemanha) eram os mais famosos compradores da Europa.

Esta prática de empacotar ativos e revendê-los é chamada de securitização. O principal problema com esta securitização é que ela misturava ativos bons (mutuários com bom histórico de crédito) com ativos ruins (mutuários sem nenhum histórico de crédito) no mesmo pacote. Logo, quem comprava um pacote contendo ativos bons também acabava por tabela adquirindo ativos ruins. Qualquer calote dos ativos ruins afetaria sobremaneira os balancetes destas instituições.

Portanto, a pergunta inevitável é: como estes grandes bancos foram seduzidos a comprar estes ativos (tecnicamente chamados de derivativos de crédito) contaminados? Resposta: porque agências de classificação de risco, como Moody's, Fitch e Standard & Poor's, deram classificação máxima (AAA) para estes ativos.

O que nos leva à próxima pergunta: por que estas agências cometeram erros tão crassos? As respostas variam. Há quem diga que, como durante todo o período os preços dos imóveis só faziam subir e os títulos lastreados em hipotecas estavam gerando grandes retornos, com pouquíssimos calotes, as agências optaram pela decisão superficial de classificá-los de maneira extremamente favorável. Há também quem diga que todos os departamentos do governo federal americano que possuíam ligações com o setor imobiliário e que estavam incentivando políticas de compra de imóveis fizeram pressão neste sentido. Neste caso, as agências de classificação de risco simplesmente não quiseram se opor a iniciativas politicamente populares.

O que realmente se sabe é que estas três agências de classificação de risco são um cartel estritamente regulado pela SEC (a CVM americana). É a SEC quem permite a existência destas três agências, e é ela quem regulamenta e decide quem pode e quem não pode entrar neste mercado.

MANDA QUEM PODE, OBEDECE QUEM TEM JUÍZO
Na prática, isso significa que não pode surgir concorrência externa, pois o governo não deixa. Quem vai ter cacife para bancar uma agência de classificação de risco que seja genuinamente independente neste cenário altamente regulamentado? Há um Longo e extenuante processo burocrático-regulatório, de modo que é impossível surgir uma agência para confrontar as classificações destas três grandes.

Portanto, é perfeitamente plausível imaginar que estas três agências não iriam querer criar turbulência política e se indispor com o governo americano rebaixando a classificação dos títulos hipotecários. Isso poderia colocar em risco seu privilegiado cartel (totalmente protegido pelo governo americano) e, consequentemente, afetar seus portentosos lucros. O fato é que estas agências merecem toda a culpa que lhes foi atribuída. Elas estavam apenas fazendo o que o governo lhes mandava.

O PRINCIPAL CULPADO DE TUDO

No entanto — e este é o X da questão — absolutamente nada disso teria sido possível caso não houvesse uma entidade com o poder legal de criar dinheiro do nada e injetar este dinheiro no setor bancário para que os bancos pudessem continuamente criar mais empréstimos. Sem uma entidade alimentando todo este sistema com dinheiro criado do nada, não teria sido possível que (1) os empréstimos bancários para a aquisição de imóveis aumentassem continuamente por 15 anos; (2) que os preços dos imóveis disparassem, alimentando todos os tipos de atividades especulativas; (3) que Fannie Mae e Freddie Mac fossem capazes de atrair um volume cada vez maior de dinheiro de investidores por contarem com a proteção implícita do governo; (4) que o decreto CRA fosse bem-sucedido em obrigar os bancos a continuamente fazer empréstimos para pessoas com histórico de crédito duvidoso.

Em suma: sem um Banco Central criando dinheiro e dando este dinheiro aos bancos para que estes concedessem empréstimos — e, com isso, fizessem com que a quantidade de dinheiro na economia americana aumentasse continuamente —, não teria como haver uma bolha imobiliária. Certamente, não uma bolha destas proporções.

Todo este novo dinheiro criado pelo Banco Central americano (Fed) e multiplicado pelo sistema bancário por meio do processo de reservas fracionárias foi majoritariamente canalizado para o setor imobiliário. E, para intensificar ainda mais as distorções, os critérios excessivamente frouxos para a concessão de empréstimos — critérios estes gerados por políticas governamentais criadas exatamente com este propósito — fizeram com que especulações e compras imobiliárias excessivas parecessem investimentos geniais.

Portanto, eis o resumo: as medidas governamentais visando à redução dos padrões de empréstimos em conjunto com os privilégios usufruídos pelas para-estatais Fannie Mae e Freddie Mac desviaram para o setor imobiliário uma fatia extremamente volumosa de todo o dinheiro que o Banco Central e o sistema bancário do EUA estavam criando. Para tornar a tempestade ainda mais perfeita, as agências de classificação de risco contribuíram para a bagunça concedendo classificação máxima para todos os títulos imobiliários oriundos deste arranjo, principalmente aqueles títulos de emprestadores sem nenhum histórico de crédito. Isso fez com que os grandes bancos americanos, e também os grandes bancos estrangeiros, comprassem títulos hipotecários em quantias volumosas, permitindo que Fannie e Freddie continuassem dando liquidez ao mercado imobiliário, perpetuando a bolha.

Mas foi o Fed, em última instância, quem tornou possível todo o boom artificial do setor imobiliário, e foi todo o dinheiro por ele criado quem forneceu o principal estímulo à subida estrondosa dos preços dos imóveis vista na década de 2000.

ANATOMIA DO COLAPSO

Tendo em mente todo este arranjo, e sabendo como tudo funcionava, podemos agora ver como tudo ocorreu.

A BONANÇA

Todo o processo começou a ser desencadeado no final do ano 2000, quando houve o estouro da bolha das empresas de tecnologia. Temendo uma iminente recessão, o Fed aumentou suas injeções de dinheiro no sistema bancário para gerar uma redução nos juros. Estas injeções de dinheiro foram intensificadas logo após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Durante este período, a taxa básica de juros da economia americana caiu de 6,5% para 1%. E assim ficou até meados de 2004.

O gráfico abaixo ilustra este período. A linha azul, eixo da esquerda, mostra a evolução da taxa básica de juros da economia americana. A linha vermelha, eixo da direita, mostra a evolução da base monetária, que é uma variável sob total controle do Banco Central, e que representa todo o dinheiro criado pelo Banco Central. Observe a aceleração ocorrida a partir de 2001.



Este aumento na base monetária deixou os bancos repletos de dinheiro para ser emprestado. E emprestar foi o que eles fizeram, e majoritariamente para o setor imobiliário.

O gráfico abaixo mostra os empréstimos totais feitos pelo setor bancário (linha azul). E mostra também os empréstimos exclusivamente voltados para a aquisição de imóveis (linha vermelha). Observe a evolução desde 1980, e a grande aceleração ocorrida na década de 2000.



Vale observar que, de 2000 a 2008, o crédito total aumenta incríveis 100%, de US$3,5 para US$7 trilhões. Isso significa que o sistema bancário, estimulado pelo Fed, jogou US$3,5 trilhões na economia americana em apenas 8 anos. Para a aquisição de imóveis foram direcionados "módicos" US$2 trilhões (de US$1,5 trilhão para US$3,5 trilhões)

Ou seja, dos US$3,5 trilhões jogados na economia, US$2 trilhões foram para o setor imobiliário. Acrescente a isso todas as medidas governamentais citadas ao longo deste artigo, e realmente não há absolutamente nenhum motivo para se estranhar a bolha imobiliária que foi formada.

Isso explica toda aquela elevação de preços observada no gráfico 1. De 1993 a 2006, os preços dos imóveis se apreciaram acentuadamente. Em alguns mercados específicos, até mesmo os preços das moradias mais simples se tornaram astronomicamente altos. Esta subida nos preços estimulava novos investimentos em mais construções de imóveis, o que gerava um aumento na oferta de imóveis. E este aumento na oferta de imóveis viria, mais à frente, a exercer uma pressão baixista nos preços dos imóveis.

O COLAPSO

A partir de meados de 2004, com a economia americana já recuperada da recessão de 2001, o Fed começou a reduzir o ritmo de injeções de dinheiro no sistema bancário. Consequentemente, os juros começaram a subir.

O gráfico abaixo mostra esta correlação entre desaceleração do crescimento da base monetária e aumento da taxa básica de juros.

Este aumento da taxa básica de juros de 1% para 5,25% afetou as taxas de juros dos empréstimos imobiliários. Os juros das hipotecas com taxas ajustáveis (linha vermelha) saem de uma mínima de 3,5% no início de 2004 e vão para quase 6% em meados de 2006. Já os juros das hipotecas convencionais, de 30 anos (linha azul), vão de 5,5% para quase 7% neste mesmo período.

Este aumento dos juros esfriou a demanda por imóveis. Uma redução na demanda por imóveis em conjunto com um acentuado aumento na oferta de imóveis gerou o inevitável: no final de 2006, os preços começaram a cair.

A queda nos preços — na realidade, a percepção de que os preços não mais iriam aumentar — arrefeceu toda a atividade especulativa. Pessoas que haviam comprado imóveis para especular viram que a festa havia acabado. O que elas fizeram? Simplesmente pararam de pagar suas hipotecas. Deram o calote. Por quê? Porque elas haviam pegado empréstimos extremamente generosos, que não exigiam absolutamente nenhum pagamento de entrada. Elas simplesmente abandonaram seus imóveis. Não perderam nada.

Já outras pessoas pararam de pagar suas hipotecas simplesmente porque o aumento dos juros havia tornado impossível continuar honrando suas prestações.

A combinação destes dois fatores fez com que os calotes totais nos empréstimos imobiliários disparassem. Começou timidamente em 2006. Disparou em 2007. Foi para a estratosfera em 2008.

De 2005 até o final de 2008, os calotes pularam de US$20 bilhões para US$170 bilhões. Um aumento de 750% em 4 anos.

A partir daí, o resto é história. O aumento nos calotes fez com que todos os bancos de investimento que haviam comprados títulos lastreados em hipotecas repentinamente não mais auferissem essa receita. O valor destes ativos caiu para zero. Uma redução nos ativos sem uma concomitante redução nos passivos fez com que vários destes bancos sofressem uma brutal redução em seu capital (patrimônio líquido). Com o capital afetado, os bancos simplesmente pararam de conceder novos empréstimos, inclusive entre eles próprios no mercado interbancário. Isso gerou o famoso problema do congelamento do mercado de crédito. (Veja no gráfico 3 como a linha azul se torna plana no primeiro semestre de 2008). Consequentemente, vários bancos começaram a enfrentar sérios problemas de liquidez.

Essa crise começou a se tornar mundialmente visível em agosto de 2007. No dia 9 daquele mês, o banco francês BNP Paribas anunciou que estava suspendendo saques em dois dos seus fundos que haviam investido volumosamente em títulos lastreados em hipotecas americanas. Isso afetou o banco britânico Northern Rock, que dependia exatamente destes fundos de investimento para conseguir liquidez. Incapaz de conseguir um empréstimo de curto prazo no mercado bancário, o Northern Rock recorreu ao Banco Central da Inglaterra para pedir um empréstimo de 3 bilhões de libras. Tudo parecia estar indo bem, exceto por um detalhe: um informante dentro do Banco da Inglaterra alertou a BBC sobre a operação no dia 13 de setembro de 2007. A notícia de que o banco estava insolvente se espalhou como fogo na pólvora e, na manhã seguinte, houve uma corrida bancária ao Northern Rock, com correntistas ávidos para sacar seu dinheiro. Foi a primeira corrida bancária em larga escala desde 1930. O governo britânico anunciou que iria garantir todos os depósitos do banco. No dia 17 de fevereiro de 2008, após o governo recusar várias ofertas de aquisição pelos outros bancos, o Northern Rock foi nacionalizado.
Daí por diante, todo o castelo de cartas começou a desabar.

O banco de investimentos Bear Stearns se tornou insolvente em março de 2008. O Tesouro americano orquestrou sua aquisição pelo JP Morgan.

No dia 7 de setembro, Fannie Mae e Freddie Mac foram nacionalizadas completamente.

Na semana seguinte, o Fed orquestrou a aquisição do Merril Lynch pelo Bank of America.

No dia 15 de setembro, o Lehman Brothers anunciou sua falência. Não houve socorro.

No dia seguinte, a seguradora AIG, de alcance global, também anunciou que estava sem dinheiro. O caso da AIG é interessante. Ela repentinamente se descobriu sem dinheiro não porque havia investido em títulos lastreados em hipotecas, mas sim porque havia emitidos seguros contra o calote de hipotecas (os chamados "credit default swaps"). Sempre que uma instituição era caloteada por algum devedor, ela recorria à AIG, que havia emitido apólices contra esses calotes hipotecários. Com a súbita disparada nos calotes, a AIG repentinamente foi para o vermelho.

E por que a AIG havia emitido tantas apólices de seguro contra calotes de hipotecas? Porque ela havia sido informada pelo governo de que os preços dos imóveis jamais cairiam, e havia também sido informada pelas três agências de classificação de risco e que os títulos lastreados em hipotecas eram AAA — isto é, extremamente confiáveis e seguros. Ou seja, em troca desta segurança prometida, a AIG emitiu várias apólices e coletou uma boa soma em prêmios. Até que tudo se reverteu, e todos os bancos foram correndo reclamar suas indenizações.

No total, até o fim do ano de 2008, o Fed viria a emprestar US$125 bilhões para a AIG em troca de 80% da empresa. Segundo o The New York Times, esta foi "a mais radical intervenção no setor privado em toda a história do Banco Central".

Após todas estas intervenções, o Fed assumiu uma postura totalmente inaudita em toda a sua história: ele simplesmente passou a comprar todos os títulos hipotecários em posse dos bancos. Ou seja, ele passou a imprimir dinheiro e dar aos bancos em troca dos títulos hipotecários em posse destes bancos. Isso limpou o balancete dos bancos e fez com que a base monetária explodisse. No entanto, e felizmente, todo este aumento da base monetária não se converteu em expansão do crédito. Ou seja, os bancos não jogaram este dinheiro na economia. A quase totalidade do aumento da base monetária transformou-se em "reservas em excesso". "Reservas em excesso" são as reservas que os bancos mantêm voluntariamente depositadas junto ao Fed, além do volume determinado pelo compulsório.

O gráfico abaixo mostra a evolução da base monetária (linha azul) e das reservas em excesso (linha vermelha), que representa o dinheiro que os bancos não emprestaram ao público porque preferriam mantê-lo voluntariamente depositado junto ao Fed, que está pagando juros de 0,25% ao ano sobre este montante.

Toda esta nova política adotada pelo Fed resultou em um generoso e gratuito subsídio para o sistema bancário. No final, não apenas seus lucros dos tempos da bonança foram mantidos, como os prejuízos ainda foram socializados. Atualmente, os bancos de Wall Street operam em um regime de risco quase nulo: eles fazem empréstimos hipotecários, revendem os títulos das hipotecas para o Fed, recebem o dinheiro de volta (com um lucro), e ainda deixam boa parte deste dinheiro recebido do Fed depositado no próprio Fed, que está pagando 0,25% ao ano sobre este montante.

Por causa de toda a intervenção governamental, toda a lambança acabou valendo a pena para os bancos.

CONCLUSÃO

De posse de todas as informações aqui contidas, o leitor deve se fazer as três seguintes perguntas:

1) Todo este arranjo apresentado configura um sistema totalmente desregulamentado, um genuíno laissez-faire, ou, ao contrário, representa um sistema fortemente intervencionista, no qual políticos, burocratas e reguladores determinavam regras e agitavam em prol de suas conveniências?

2) Um sistema bancário que goza de uma garantia implícita dada pelo governo — de que haverá socorro caso as coisas deem erradas — tende a apresentar comportamentos mais temerários ou mais prudentes?

3) Sem um Banco Central criando dinheiro e permitindo aos bancos manterem suas expansões creditícias de modo crescente, será que tudo isso teria sido possível?

As respostas a estas perguntas têm de estar claras antes de se iniciar qualquer debate a respeito da crise.

E fica a sugestão de leitura do segundo livro mais lido nos EUA, depois da Bíblia: A REVOLTA DE ATLAS, da filósofa russa Ayn Rand. Nele (um dos melhores livros que já li), ela exagera uma realidade quase impossível de se imaginar nos EUA de 1957 (ano em que foi escrito), mas que as regras do CRA (Community Reinvestment Act, como visto acima, transformam em uma realidade atual assustadora...



A quem se interessar, há também links para os 3 filmes baseados no livro: