30 agosto 2006

BEM-VINDAS AS NOVAS USANÇAS


As deliciosas e, ao mesmo tempo, cáusticas, ferinas, mordazes crônicas de Machado de Assis datam da segunda metade do século 19. Se, de fato, uma das formas de se avaliar a importância de uma obra literária é sua capacidade de resistir aos efeitos do tempo, então a crônica que reproduzo abaixo é um dos melhores exemplos do quanto seu humor e sua ironia continuam mais atuais do que nunca.

Por aquela época, talvez até fosse adequado intitulá-la Empregado Público Aposentado, como fez Machado, mas, hoje, não mais. Hoje, este personagem é bem diferente daquele tão cruelmente retratado pelo “bruxo do Cosme Velho”, como o chamava Drummond. Não, hoje ele já não é mais, necessariamente, um retrógrado, como Machado o via. Mas, então, por que a considero atualíssima? Porque continua havendo muita gente, inclusive empregados públicos aposentados, que ainda podem se enxergar na crônica machadiana. Mas, como não concordo em restringir as qualidades reacionárias ao empregado público aposentado, um estigma hoje injusto, sempre que ele for citado substituirei por ELE. Confira e veja se a crônica é ou não atualíssima:
Os egípcios inventaram a múmia para conservarem o cadáver através dos séculos. Assim a matéria não desapareceria na morte (...) ELE não se aniquila de todo na aposentadoria; vai além, sob uma forma curiosa, antediluviana, indefinível (...) Espelho à rebours, só reflete o passado, e por ele chora como uma criança. É a elegia viva do que foi, salgueiro do carrancismo, carpideira dos velhos sistemas (...) Reforma, é uma palavra que não se diz diante d´ELE. Há lá nada mais revoltante do que reformar o que está feito? Abolir o método! Desmoronar a ordem! (...) Tudo quanto tende ao desequilíbrio das velhas usanças é um crime para esse viúvo da secretaria, arqueólogo dos costumes, que não compreende que haja nada além das raias de uma existência oficial. (...) Todos os progressos do país estão ainda debaixo da língua fulminante deste cometa social. Estradas de ferro! É uma loucura do modernismo! Pois não bastavam os meios clássicos de transporte que até aqui punham em comunicação localidades afastadas? Estradas de ferro? Desta sorte todas as instituições que respiram revolução na ordem estabelecida das coisas – podem contar com um contra d´ELE. Este meio mesmo de retratar à pena, como faço atualmente, revoltaria o espírito tradicional da grande múmia do passado. Uma inovação de mau gosto, dirá ELE (...) O leitor conhece decerto a individualidade de que lhe falo, é muito vulgar entre nós, e de qualidades tão especiais que a denunciam entre mil cabeças. Que lhe acha? Quanto a mim é inofensiva como um cordeiro. Deixam-no mirar-se no espelho dos velhos ursos, falar em política, discutir os governos; não faz mal”.

Basta assistir ao programa eleitoral gratuito para encontrar alguns desses personagens mumificados. Carpideiras dos velhos sistemas, arqueólogos dos costumes, têm horror a qualquer alteração nas velhas usanças, tão de acordo com os seus velhos métodos. Para combater o novo e obstruir o moderno, fantasiam as suas velharias com roupagem moralizadora, transfiguram as suas ortodoxias escondendo-as numa linguagem economicista, metamorfoseiam as suas idiossincrasias dando-lhes uma falsa moldura ética.
No fundo, ao fim e ao cabo, esses tristes personagens não passam de lombadas na estrada da história, de calmarias no oceano do tempo, de mata-burros no caminho dos verdadeiros cavaleiros.


Já nem me lembro se li ou se pensei, mas é certo: "Os governantes que se conformaram em manter as coisas como sempre foram... se foram".

Um comentário:

Rafael Pivato disse...

Teria ele falado sobre coisas ainda atuais, ou as coisas realmente não tendem a mudar? Eu fico com a segunda.