A DESCENTRALIZAÇÃO NA AGENDA NACIONAL
No latim clássico não existia distinção entre letras maiúsculas e minúsculas. Todos os textos eram escritos com letras semelhantes àquelas que hoje conhecemos como maiúsculas. A criação da maior parte das letras minúsculas deu-se entre os séculos IV e VI.
Quando a escrita e a cultura se refugiam nos mosteiros os livros passaram a ser vistos como objetos artísticos que valem não só pelo seu conteúdo mas também pelo seu aspecto físico. Assim, as iluminuras medievais desenvolvem a arte das maiúsculas nas letras que iniciam os capítulos de um livro. É por isso que, ainda hoje, a letra maiúscula é chamada de Capitular.
Depois que o padrão da escrita deixa de ser a inscrição na pedra e passa a ser o desenho no papel, as letras maiúsculas, mais difíceis de usar em caligrafia, caem em desuso para os textos simples, passando a ser vistas como algo ao mesmo tempo arcaico e elegante. Vem daí a noção inconsciente de que as letras maiúsculas designam coisas mais importantes do que as minúsculas.
Começa-se então a usar maiúsculas para dar ênfase a determinadas palavras, como nomes próprios, ou qualquer outra à qual se queira dar realce pelo seu sentido moral ou espiritual. Não é por outra razão que cientistas grafam "Ciência"; artistas grafam "Artes" ou "Cultura"; políticos grafam “Partido”; socialistas grafam “Movimentos Sociais”; liberais grafam “Mercado”, e por aí vai, demonstrando, claramente, que por trás dessa flexibilidade do uso das maiúsculas e minúsculas há um forte componente ideológico, diferentes visões de mundo.
A revista Veja da semana passada trouxe um editorial corajoso e polêmico. Sob o título “Uma questão de estado”, informou seus leitores que, a partir daquela edição, passaria “a grafar a palavra estado com letra minúscula”, contrariando os dicionaristas que aconselham o uso de maiúscula quando a palavra for usada na acepção de nação politicamente organizada.
Seus editores explicaram assim a decisão: “Se povo, sociedade, indivíduo, pessoa, liberdade, instituições, democracia, justiça são escritas com minúscula, não há razão para escrever estado com maiúscula. Escrever estado com inicial maiúscula, quando cidadão ou contribuinte vão assim mesmo, em minúsculas, é uma deformação típica mas não exclusivamente brasileira. Os franceses, estado-dependentes, adoradores de seu generoso cofre nacional, escrevem ´État´. Os povos de língua inglesa, generalizando, esperam do estado a distribuição equânime da justiça, o respeito a contratos e à propriedade e a defesa das fronteiras. Mas não consideram uma dádiva do estado o direito à boa vida material sem esforço. Grafam ´state´. Com maiúscula, estado simboliza uma visão de mundo distorcida, de dependência do poder central, de fé cega e irracional na força superior de um ente capaz de conduzir os destinos de cada uma das pessoas. Grafar estado é uma pequena contribuição de Veja para a demolição da noção disfuncional de que se pode esperar tudo de um centralismo provedor".
O poeta chileno Pablo Neruda costumava ensinar: "Escrever é fácil: você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio você coloca as idéias". Pois não foi outra coisa que fizeram os editores da revista. Como se pode observar, o pano de fundo dessa decisão editorial é a opção entre centralização e descentralização, tema cada vez mais em pauta nas discussões que buscam encontrar caminhos e soluções para o desenvolvimento do País.
Afinal, sem a correta repartição das competências e a devida distribuição dos tributos, acentua-se cada vez mais a centralização e a concentração de poderes nas mãos da União, agravando-se o nefasto e ineficiente fenômeno do “federalismo centrípeto”. Enquanto o Governo Federal comemora seguidos recordes de arrecadação, estados e municípios vivem uma constante sangria de recursos, à beira de um colapso financeiro. É uma equação que não fecha nunca.
O espírito federativo não é uma dádiva a ser partilhada entre os entes federados, mas um dever de Estado (ou estado?), que gera direito subjetivo à unidade federada.
O grande historiador Alexis de Tocqueville dizia que “A história nunca muda. O que muda são os historiadores”. Na semana passada, ao desmentir o francês, a revista Veja deu uma valiosa contribuição para mudar a nossa história.
Nenhum comentário:
Postar um comentário