JOÃO PEREIRA COUTINHO
FOLHA DE S. PAULO - ILUSTRADA
27 DE SETEMBRO DE 2011
Grande mistério: por que motivo os livros de Theodore Dalrymple não foram ainda publicados no Brasil? Fato: Dalrymple não é leitura fácil para gostos politicamente corretos. Mas qualquer obra do dr. Dalrymple merece o tempo e o dinheiro. Dalrymple não engana.
Aliás, o seu mais recente livro é uma anatomia dos enganos. Dos sentimentais enganos que começam na esfera privada e rapidamente transbordam, como um líquido viscoso e corrosivo, para a arena pública. Título: "Spoilt Rotten: The Toxic Cult of Sentimentality" (London: Gibson Square, 260 págs.) -algo como "podre e estragado: o culto tóxico do sentimentalismo".
Nem mais. Em finais do século 18, a Europa produziu uma nova sensibilidade "romântica", tendo Rousseau como patrono e o sentimento como deus. Se os homens nascem bons, como explicar a miséria e a infelicidade da espécie?
Não, obviamente, com a natureza imperfeita dela -a velha explicação das teologias tradicionais. Se imperfeição existe, ela se deve a uma sociedade política que aprisiona o "bom selvagem" e impede a expressão pura e purificante do seu "Eu".
Hoje, o "bom selvagem" anda solto. E, com ele, um "Eu" orgulhoso da sua própria ignorância -e orgulhoso porque crente na genuinidade da sua própria genuinidade.
Eis a essência do sentimentalismo: a expressão da emoção sem a presença do julgamento. Sentir basta -porque os sentimentos nunca enganam. Ou, como diria Rousseau, podemos errar, mas, se o erro for sincero, ele não foi propriamente um erro.
Na esfera privada, essa forma de "pensamento" (que é, na verdade, o recuo do pensamento) até pode proporcionar momentos divertidos.
Dalrymple conta um: o dia em que conheceu uma estudante de "Genocide Studies" (sim, isso existe) que dissertou apaixonadamente sobre o genocídio de Ruanda porque vira o filme "Hotel Ruanda". De fato: estudar para que quando basta uma "identificação" (sentimental) com as vítimas de um cataclismo qualquer?
Quando li essa passagem, ri alto. Mas ri com nostalgia. Conheço vários desses "especialistas" que falam sobre as desgraças do mundo porque viram um filme de Hollywood sobre o assunto. ("O aquecimento global existe, juro. Você não viu o filme de Al Gore?")
O sentimentalismo substitui a razão pela emoção. E, se isso diverte na esfera privada, se torna opressivo na arena pública.
Dalrymple analisa dois casos que ilustram o perigo.
O primeiro vem de Portugal, com o desaparecimento de uma criança inglesa no Algarve. Madeleine McCann era o nome, mas a mídia internacional (e sentimental) preferiu rebatizá-la como "Maddie".
Nada sabemos de definitivo sobre o caso: como desapareceu, quem a fez desaparecer, onde estará a criança -viva ou morta.
Mas a opinião pública, confrontada com dois pais que não choravam em público, rapidamente encontrou neles os culpados. A ausência de sentimentalismo não poderia ser explicada por noções clássicas de decoro ou resiliência. A ausência de sentimentalismo era uma revelação de monstruosidade moral.
E, se assim foi em Portugal, assim foi na Inglaterra, com a morte da princesa Diana. Um momento sentimental (e irracional) que levou milhares de ingleses aos portões do Palácio de Buckingham, empunhando cartazes contra a monarquia.
"Mostrem-nos que também sentem!", lia-se num deles, resumo perfeito da demência sentimental: nós queremos que os nossos governantes partilhem as nossas emoções públicas -e em público. Uma espécie de terapia coletiva a que Tony Blair deu o seu contributo, coroando Diana Spencer com o apropriado título de "Princesa do Povo".
O problema dessa terapia é que os líderes deixam de ser líderes e passam a obedecer aos caprichos sentimentais das massas.
Para citar apenas um caso entre mil, são esses caprichos, alimentados também por cantores pop subletrados, que explicam o grande desastre da ajuda humanitária à África. Não que os africanos pobres e famintos não precisem de ajuda.
Mas essa ajuda não pode acabar nas contas bancárias dos governantes africanos que são os primeiros responsáveis pela miséria do seu povo.
O culto do sentimento, escreve Dalrymple, não destrói apenas a capacidade de pensar. Destrói a simples ideia de que é preciso pensar.
Não conheço melhor receita para a barbárie.
Nem mais. Em finais do século 18, a Europa produziu uma nova sensibilidade "romântica", tendo Rousseau como patrono e o sentimento como deus. Se os homens nascem bons, como explicar a miséria e a infelicidade da espécie?
Não, obviamente, com a natureza imperfeita dela -a velha explicação das teologias tradicionais. Se imperfeição existe, ela se deve a uma sociedade política que aprisiona o "bom selvagem" e impede a expressão pura e purificante do seu "Eu".
Hoje, o "bom selvagem" anda solto. E, com ele, um "Eu" orgulhoso da sua própria ignorância -e orgulhoso porque crente na genuinidade da sua própria genuinidade.
Eis a essência do sentimentalismo: a expressão da emoção sem a presença do julgamento. Sentir basta -porque os sentimentos nunca enganam. Ou, como diria Rousseau, podemos errar, mas, se o erro for sincero, ele não foi propriamente um erro.
Na esfera privada, essa forma de "pensamento" (que é, na verdade, o recuo do pensamento) até pode proporcionar momentos divertidos.
Dalrymple conta um: o dia em que conheceu uma estudante de "Genocide Studies" (sim, isso existe) que dissertou apaixonadamente sobre o genocídio de Ruanda porque vira o filme "Hotel Ruanda". De fato: estudar para que quando basta uma "identificação" (sentimental) com as vítimas de um cataclismo qualquer?
Quando li essa passagem, ri alto. Mas ri com nostalgia. Conheço vários desses "especialistas" que falam sobre as desgraças do mundo porque viram um filme de Hollywood sobre o assunto. ("O aquecimento global existe, juro. Você não viu o filme de Al Gore?")
O sentimentalismo substitui a razão pela emoção. E, se isso diverte na esfera privada, se torna opressivo na arena pública.
Dalrymple analisa dois casos que ilustram o perigo.
O primeiro vem de Portugal, com o desaparecimento de uma criança inglesa no Algarve. Madeleine McCann era o nome, mas a mídia internacional (e sentimental) preferiu rebatizá-la como "Maddie".
Nada sabemos de definitivo sobre o caso: como desapareceu, quem a fez desaparecer, onde estará a criança -viva ou morta.
Mas a opinião pública, confrontada com dois pais que não choravam em público, rapidamente encontrou neles os culpados. A ausência de sentimentalismo não poderia ser explicada por noções clássicas de decoro ou resiliência. A ausência de sentimentalismo era uma revelação de monstruosidade moral.
E, se assim foi em Portugal, assim foi na Inglaterra, com a morte da princesa Diana. Um momento sentimental (e irracional) que levou milhares de ingleses aos portões do Palácio de Buckingham, empunhando cartazes contra a monarquia.
"Mostrem-nos que também sentem!", lia-se num deles, resumo perfeito da demência sentimental: nós queremos que os nossos governantes partilhem as nossas emoções públicas -e em público. Uma espécie de terapia coletiva a que Tony Blair deu o seu contributo, coroando Diana Spencer com o apropriado título de "Princesa do Povo".
O problema dessa terapia é que os líderes deixam de ser líderes e passam a obedecer aos caprichos sentimentais das massas.
Para citar apenas um caso entre mil, são esses caprichos, alimentados também por cantores pop subletrados, que explicam o grande desastre da ajuda humanitária à África. Não que os africanos pobres e famintos não precisem de ajuda.
Mas essa ajuda não pode acabar nas contas bancárias dos governantes africanos que são os primeiros responsáveis pela miséria do seu povo.
O culto do sentimento, escreve Dalrymple, não destrói apenas a capacidade de pensar. Destrói a simples ideia de que é preciso pensar.
Não conheço melhor receita para a barbárie.
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