PRIMEIRAS IDEIAS DO ESTUDO “A MENTALIDADE
REVOLUCIONÁRIA” DE OLAVO DE CARVALHO
“Mentalidade revolucionária” é o
estado de espírito, permanente ou transitório, no qual um indivíduo ou grupo se
crê habilitado a remoldar o conjunto da sociedade – senão a natureza humana em
geral – por meio da ação política; e acredita que, como agente ou portador de
um futuro melhor, está acima de todo julgamento pela humanidade presente ou
passada, só tendo satisfações a prestar ao “tribunal da História”. Mas o
tribunal da História é, por definição, a própria sociedade futura que esse
indivíduo ou grupo diz representar no presente; e, como essa sociedade não pode
testemunhar ou julgar senão através desse seu mesmo representante, é claro que
este se torna assim não apenas o único juiz soberano de seus próprios atos, mas
o juiz de toda a humanidade, passada, presente ou futura. Habilitado a acusar e
condenar todas as leis, instituições, crenças, valores, costumes, ações e obras
de todas as épocas sem poder ser por sua vez julgado por nenhuma delas, ele
está tão acima da humanidade histórica que não é inexato chamá-lo de
Super-Homem.
Recusando-se a prestar
satisfações senão a um futuro hipotético de sua própria invenção e firmemente
disposto a destruir pela astúcia ou pela força todo obstáculo que se oponha à
remoldagem do mundo à sua própria imagem e semelhança, o revolucionário é o
inimigo máximo da espécie humana, perto do qual os tiranos e conquistadores da
antiguidade impressionam pela modéstia das suas pretensões e por uma notável parcimônia
no emprego dos meios.
O advento do revolucionário ao
primeiro plano do cenário histórico – fenômeno que começa a perfilar-se por volta
do século XV e se manifesta com toda a clareza no fim do século XVIII –
inaugura a era do totalitarismo, das guerras mundiais e do genocídio
permanente. Ao longo de dois séculos, os movimentos revolucionários, as guerras
empreendidas por eles e o morticínio de populações civis necessário à consolidação
do seu poder mataram muito mais gente do que a totalidade dos conflitos
bélicos, epidemias, terremotos e catástrofes naturais de qualquer espécie desde
o início da história do mundo.
O movimento revolucionário é o
flagelo maior que já se abateu sobre a espécie humana desde o início dos tempos
históricos.
O socialismo e o nazismo são
revolucionários não porque propõem respectivamente o predomínio de uma classe
ou de uma raça, mas porque fazem dessas bandeiras os princípios de uma
remodelagem radical não só da ordem política, mas de toda a vida humana. Os malefícios
que prenunciam tornam-se universalmente ameaçadores porque não se apresentam
como respostas locais a situações momentâneas, mas como mandamentos universais
imbuídos da autoridade de refazer o mundo segundo o molde de uma hipotética
perfeição futura.
O que caracteriza
inconfundivelmente o movimento revolucionário é que sobrepõe a autoridade de um
futuro hipotético ao julgamento de toda a espécie humana, presente ou passada. A
revolução é, por sua própria natureza, totalitária e universalmente expansiva:
não há aspecto da vida humana que ela não pretenda submeter ao seu poder, não
há região do globo a que ela não pretenda estender os tentáculos da sua
influência.
Os sintomas mais graves e
constantes da mentalidade revolucionária são a inversão do sentido do tempo (o
futuro hipotético tomado como garantia da realidade presente), a inversão de
sujeito e objeto (camuflar o agente, atribuindo a ação a quem a padece) e a
inversão da responsabilidade moral (vivenciar os crimes e crueldades do
movimento revolucionário como expressões máximas da virtude e da santidade).
Na peça de Pirandello, Henrique
IV, um milionário louco se convence de que é o rei Henrique IV e força todos os
seus empregados a vestir-se como membros da corte. No fim eles já não têm mais
certeza de que são eles mesmos ou membros da corte de Henrique IV. É este o
perigo a que os democratas se expõem quando aceitam discutir respeitosamente as
idéias do revolucionário, em vez de denunciar a farsa estrutural da própria
situação de debate. A loucura espalha-se como um vírus de computador. A maioria
dos democratas que conheço é inteiramente indefesa em face da prepotência
psicológica do discurso revolucionário. Daí a hesitação, a pusilanimidade, a
debilidade crônica de suas respostas ao desafio revolucionário. Uma doença
mental não pode ser "respeitada", aliás nem
"desrespeitada". O respeito ou o desrespeito supõem um fundo de
convivência normal, que justamente o delírio revolucionário torna impossível.
A esquerda – toda a esquerda,
sem exceção – enxerga o tempo histórico às avessas: supõe um futuro hipotético
e o toma como premissa fundante da compreensão do passado. Em seguida, usa essa
inversão como princípio legitimador das suas ações no presente. Como o futuro
hipotético permanece sempre futuro, e por isso mesmo sempre hipotético, toda
certeza alegada pelo movimento esquerdista num dado momento pode ser mudada ou
invertida no momento seguinte, sem prejuízo, seja da continuidade do movimento,
seja do sentimento de coerência por baixo das mais alucinantes incoerências.
A mentalidade revolucionária não
é só inversão do tempo: é inversão das relações lógicas de sujeito e objeto,
dos nexos de causa e efeito, da relação entre criminoso e vítima etc. Essas
inversões, psicóticas no sentido clínico mais estrito do termo, são a essência
do movimento revolucionário, mas essa essência pode se manifestar sob uma impressionante
variedade de formas. É por isso que o movimento revolucionário não pode ser
definido nem pelo conteúdo concreto dos seus objetivos declarados a cada
momento, nem pelo discurso ideológico com que os legitima. É preciso sempre
buscar, sob a variedade dessas aparências, a resposta à pergunta: - Tal ou qual
movimento político ou cultural, nas circunstâncias precisas em que atua, impõe
ou não impõe a seus militantes e simpatizantes aquele pacote de percepções
invertidas? Se a resposta é "sim", então torna-se claro que se trata
de um movimento inserido na corrente revolucionária. Se ele tem mais
consciência ou menos consciência disso, é perfeitamente irrelevante para os
resultados históricos objetivos que ele vai desencadear necessariamente por
meio da inversão da consciência de populações inteiras.
Se o oposto de revolução é
"reação" ou "conservadorismo", um reacionarismo ou
conservadorismo consciente não atacará o movimento revolucionário apenas na
superfície dos seus ideais proclamados ou da sua conduta política ostensiva,
mas na base mesma, que é a inversão revolucionária da consciência e das
consciências. Como todo movimento revolucionário se arroga o papel de
representante do futuro, ele só responde perante o tribunal do futuro, mas como
esse futuro, por definição, é móvel, o seu autonomeado representante no
presente não tem jamais de responder perante ninguém. A mentalidade
revolucionária é, na base, a reivindicação de uma autoridade ilimitada, de um
poder divino. As pretensões explícitas de tal ou qual líder revolucionário
podem até parecer modestas e sensatas na formulação verbal que ele lhes dê no
momento, mas no fundo delas está sempre essa reivindicação, essa exigência
implícita. Os movimentos revolucionários não criaram as grandes ditaduras genocidas
do século XX por um desvio dos seus belos ideais ou por um acidente histórico
qualquer. Eles as criaram por necessidade intrínseca da própria dialética
revolucionária, que sempre terminará em totalitarismo sangrento, seja por um
caminho, seja por outro caminho aparentemente inverso.
É nesse ponto, precisamente, que
a mentalidade revolucionária tem de ser atacada de maneira implacável e
incansável: ela é demência megalômana na sua essência mesma. Ela nunca pode
produzir nada de bom. Ela é a mentira existencial mais vasta e profunda que já
infectou a alma humana desde o início dos tempos. Ela é crime e maldade desde a
sua raiz mesma – e é essa raiz que tem de ser cortada, não as ramificações mais
aparentes apenas.
A boa notícia é que o movimento
revolucionário não é uma constante na história humana. Ele apareceu numa dada
civilização e num dado momento do tempo. Ele teve um começo e terá um fim.
Apressar esse fim é o dever de todos os homens de bem.
O principal e mais desastroso
reflexo da mentalidade revolucionária é que o próprio impulso conservador, um
dos mais básicos e mais saudáveis da humanidade, acaba por não ter meios
próprios de expressão e por copiar as estratégias e táticas revolucionárias,
infectando-se da mentalidade que desejaria combater. Só para dar um exemplo,
quando você rejeita alguma proposta revolucionária, logo lhe perguntam:
"Mas o que você propõe em lugar disso?". Aí o conservador começa a
inventar hipotéticas soluções conservadoras para todos os problemas humanos, e
perde a autoridade da prudência, passando a discursar na clave psicótica das
"propostas de sociedade". Ser conservador é não ter nenhuma proposta
de sociedade, é aceitar que a própria sociedade presente vá encontrando pouco a
pouco a solução para cada um dos seus males sem jamais perder de vista o fato
de que, para cada novo mal que seja vencido, novos males aparecerão. Ser
conservador é não ser jamais o portador de um futuro radiante, é ser o
porta-voz da prudência e da sabedoria. Ser um conservador é saber que os limites
da capacidade humana não desaparecerão só porque Lênin mandou ou porque Trotski
disse que no socialismo cada varredor de rua será um novo Leonardo da Vinci.
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