DEZ PRINCÍPIOS CONSERVADORES
por Russel Kirk
Talvez seja mais apropriado, a maior parte das vezes, usar a palavra “conservador” principalmente como adjetivo. Já que não existe um Modelo Conservador, sendo o conservadorismo, na verdade, a negação da ideologia: trata-se de um estado da mente, de um tipo de caráter, de uma maneira de olhar para a ordem social civil.
A atitude que nós chamamos de conservadorismo é sustentada por um conjunto de sentimentos, mais do que por um sistema de dogmas ideológicos. É quase verdade que um conservador pode ser definido como sendo a pessoa que se acha conservadora. O movimento ou o conjunto de opiniões conservadoras pode comportar uma diversidade considerável de visões a respeito de um número considerável de temas, não havendo nenhuma Lei do Teste (Test Act)[1] ou Trinta e Nove Artigos (Thirty-Nine Articles)[2] do credo conservador.
[1] Test Act - Lei inglesa de 1673 que exigia dos titulares de cargos civis e militares professarem a fé da Igreja Anglicana através de uma fórmula de juramento.
[2] Declaração oficial da doutrina da Igreja Anglicana.
Em suma, uma pessoa conservadora é simplesmente uma pessoa que considera as coisas permanentes mais satisfatórias do que o “caos e a noite primitiva”[3]. (Mesmo assim, os conservadores sabem, como Burke, que a saudável “mudança é o meio de nossa preservação”). A continuidade da experiência de um povo, diz o conservador, oferece uma direção muito melhor para a política do que os planos abstratos dos filósofos de botequim. Mas é claro que a convicção conservadora é muito mais do que esta simples atitude genérica.
[3] A frase "Chaos and old Night" provém do poema épico de John Milton "Paradise Lost" (Book I; line 544). Milton usa esta frase para se referir à “matéria” a partir da qual Deus ordenou e criou o mundo.
Não é possível redigir um catálogo completo das convicções conservadoras; no entanto, ofereço aqui, de forma sumária, dez princípios gerais; tudo indica que se possa afirmar com segurança que a maioria dos conservadores subscreveria a maior parte destas máximas. Nas várias edições do meu livro "The Conservative Mind", fiz uma lista de alguns cânones do pensamento conservador – a lista foi sendo levemente modificada de uma edição para a outra; em minha antologia "The Portable Conservative Reader" ofereço algumas variações sobre este assunto. Agora lhes apresento uma resenha dos pontos de vista conservadores que difere um pouco dos cânones que se encontram nestes meus dois livros. Por fim, as diferentes maneiras através das quais as opiniões conservadoras podem se expressar são, em si mesmas, uma prova de que o conservadorismo não é uma ideologia rígida. Os princípios específicos enfatizados pelos conservadores, em um dado período, variam de acordo com as circunstâncias e as necessidades daquela época. Os dez artigos de convicções abaixo refletem as ênfases dos conservadores americanos da atualidade.
§ Primeiro, um conservador crê que existe uma ordem moral duradoura.
Esta ordem é feita para o homem, e o homem é feito para ela: a natureza humana é uma constante e as verdades morais são permanentes.
Esta palavra ordem quer dizer harmonia. Há dois aspectos ou tipos de ordem: a ordem interior da alma e a ordem exterior do estado. Vinte e cinco séculos atrás, Platão ensinou esta doutrina, mas hoje em dia até as pessoas instruídas acham difícil de compreendê-la. O problema da ordem tem sido uma das principais preocupações dos conservadores desde que a palavra conservador se tornou um termo político.
O nosso mundo do século XX experimentou as terríveis conseqüências do colapso da crença em uma ordem moral. Assim como as atrocidades e os desastres da Grécia do V século a.C., a ruína das grandes nações, em nosso século, nos mostra o poço dentro do qual caem as sociedades que fazem confusão entre o interesse pessoal, ou engenhosos controles sociais, e as soluções satisfatórias da ordem moral tradicional.
Foi dito pelos intelectuais progressistas que os conservadores acreditam que todas as questões sociais, no fundo, são uma questão de moral pessoal. Se entendida corretamente esta afirmação é bastante verdadeira. Uma sociedade onde homens e mulheres são governados pela crença em uma ordem moral duradoura, por um forte sentido de certo e errado, por convicções pessoais sobre a justiça e a honra, será uma boa sociedade – não importa que mecanismo político se possa usar; enquanto se uma sociedade for composta de homens e mulheres moralmente à deriva, ignorantes das normas e voltados primariamente para a gratificação de seus apetites, ela será sempre uma má sociedade – não importa o número de seus eleitores e não importa o quanto seja progressista sua constituição formal.
§ Segundo, o conservador adere ao costume, à convenção e à continuidade.
É o costume tradicional que permite que as pessoas vivam juntas pacificamente; os destruidores dos costumes demolem mais do que o que eles conhecem ou desejam. É através da convenção – uma palavra bastante mal empregada em nossos dias – que nós conseguimos evitar as eternas discussões sobre direitos e deveres: o Direito é fundamentalmente um conjunto de convenções. Continuidade é uma forma de atar uma geração com a outra; isto é tão importante para a sociedade com o é para o indivíduo; sem isto a vida seria sem sentido. Revolucionários bem sucedidos conseguem apagar os antigos costumes, ridicularizar as velhas convenções e quebrar a continuidade das instituições sociais – motivo pelo qual, nos últimos tempos, eles têm descoberto a necessidade de estabelecer novos costumes, convenções e continuidade; mas este processo é lento e doloroso; e a nova ordem social que eventualmente emerge pode ser muito inferior à antiga ordem que os radicais derrubaram em seu zelo pelo Paraíso Terrestre.
Os conservadores são defensores do costume, da convenção e da continuidade porque preferem o diabo conhecido ao diabo que não conhecem. Eles crêem que ordem, justiça e liberdade são produtos artificiais de uma longa experiência social, o resultado de séculos de tentativas, reflexão e sacrifício. Por isto, o organismo social é uma espécie de corporação espiritual, comparável à Igreja; pode até ser chamado de comunidade de almas. A sociedade humana não é uma máquina para ser tratada mecanicamente. A continuidade, a seiva vital de uma sociedade, não pode ser interrompida. A necessidade de uma mudança prudente, recordada por Burke, está na mente de um conservador. Mas a mudança necessária, redargúem os conservadores, deve ser gradual e descriminativa, nunca se desvencilhando de uma só vez dos antigos cuidados.
§ Terceiro, os conservadores acreditam no que se poderia chamar de princípio do preestabelecimento.
Os conservadores percebem que as pessoas atuais são anões nos ombros de gigantes, capazes de ver mais longe do que seus ancestrais apenas por causa da grande estatura dos que nos precederam no tempo. Por isto os conservadores com freqüência enfatizam a importância do preestabelecimento – ou seja, as coisas estabelecidas por costume imemorial, de cujo contrário não há memória de homem que se recorde. Há direitos cuja principal ratificação é a própria antiguidade – inclusive, com freqüência, direitos de propriedade. Da mesma forma a nossa moral é, em grande parte, preestabelecida. Os conservadores argumentam que seja improvável que nós modernos façamos alguma grande descoberta em termos de moral, de política ou de bom gosto. É perigoso avaliar cada tema eventual tendo como base o julgamento pessoal e a racionalidade pessoal. O indivíduo é tolo, mas a espécie é sábia, declarou Burke. Na política nós agimos bem se observarmos o precedente, o preestabelecido e até o preconceito, porque a grande e misteriosa incorporação da raça humana adquiriu uma sabedoria prescritiva muito maior do que a mesquinha racionalidade privada de uma pessoa.
§ Quarto, os conservadores são guiados pelo princípio da prudência.
Burke concorda com Platão que entre os estadistas a prudência é a primeira das virtudes. Toda medida política deveria ser medida a partir das prováveis conseqüências de longo prazo, não apenas pela vantagem temporária e pela popularidade. Os progressistas e os radicais, dizem os conservadores, são imprudentes: porque eles se lançam aos seus objetivos sem dar muita importância ao risco de novos abusos, piores do que os males que esperam varrer. Com diz John Randolph of Roanoke, a Providência se move devagar, mas o demônio está sempre com pressa. Sendo a sociedade humana complexa, os remédios não podem ser simples, se desejam ser eficazes. O conservador afirma que só agirá depois de uma reflexão adequada, tendo pesado as conseqüências. Reformas repentinas e incisivas são tão perigosas quanto as cirurgias repentinas e incisivas.
§ Quinto, os conservadores prestam atenção ao princípio da variedade.
Eles gostam do crescente emaranhado de instituições sociais e dos modos de vida tradicionais, e isto os diferencia da uniformidade estreita e do igualitarismo entorpecente dos sistemas radicais. Em qualquer civilização, para que seja preservada uma diversidade sadia devem sobreviver ordens e classes, diferenças em condições matériais e várias formas de desigualdade. As únicas formas verdadeiras de igualdade são a igualdade do Juízo Final e a igualdade diante do tribunal de justiça; todas as outras tentativas de nivelamento irão conduzir, na melhor das hipóteses, à estagnação social. Uma sociedade precisa de liderança honesta e capaz; e se as diferenças naturais e institucionais forem abolidas, algum tirano ou algum bando de oligarcas desprezíveis irá rapidamente criar novas formas de desigualdade.
§ Sexto, os conservadores são refreados pelo princípio da imperfectibilidade.
A natureza humana sofre irremediavelmente de certas falhas graves, bem conhecidas pelos conservadores. Sendo o homem imperfeito, nenhuma ordem social perfeita poderá jamais ser criada. Por causa da inquietação humana, a humanidade tornar-se-ia rebelde sob qualquer dominação utópica e se desmantelaria, mais uma vez, em violento desencontro – ou então morreria de tédio. Buscar a utopia é terminar num desastre, dizem os conservadores: nós não somos capazes de coisas perfeitas. Tudo o que podemos esperar razoavelmente é uma sociedade que seja sofrivelmente ordenada, justa e livre, na qual alguns males, desajustes e desprazeres continuarão a se esconder. Dando a devida atenção à prudente reforma, podemos preservar e aperfeiçoar esta ordem sofrível. Mas se os baluartes tradicionais de instituição e moralidade de uma nação forem negligenciados, se dá largas ao impulso anárquico que está no ser humano: “afoga-se o ritual da inocência”[4]. Os ideólogos que prometem a perfeição do homem e da sociedade transformaram boa parte do século XX em um inferno terrestre.
[4] William Buttler Yeats, The Second Coming.
§ Sétimo, conservadores estão convencidos que liberdade e propriedade estão intimamente ligadas.
Separe a propriedade do domínio privado e Leviatã se tornará o mestre de tudo. Sobre o fundamento da propriedade privada construíram-se grandes civilizações. Quanto mais se espalhar o domínio da propriedade privada, tanto mais a nação será estável e produtiva. Os conservadores defendem que o nivelamento econômico não é progresso econômico. Aquisição e gasto não são as finalidades principais da existência humana; mas deve-se desejar uma sólida base econômica para a pessoa, a família e o Estado. Sir Henry Maine, em sua "Village Communities", defende vigorosamente a causa da propriedade privada, como diferente da propriedade pública: “Ninguém pode ao mesmo tempo atacar a propriedade privada e dizer que aprecia a civilização. A história destas duas realidades não pode ser desintrincada”. Pois a instituição da propriedade privada tem sido um instrumento poderoso, ensinando a responsabilidade a homens e mulheres, dando motivos para a integridade, apoiando a cultura geral e elevando a humanidade acima do nível do mero trabalho pesado, proporcionando tempo livre para pensar e liberdade para agir. Ser capaz de guardar o fruto do próprio trabalho; ser capaz de ver o próprio trabalho transformado em algo de duradouro; ser capaz de deixar em herança a sua propriedade para sua posteridade; ser capaz de se erguer da condição natural da oprimente pobreza para a segurança de uma realização estável; ter algo que é realmente propriedade pessoal – estas são vantagens difíceis de refutar. O conservador reconhece que a posse de propriedade estabelece certos deveres do possuidor; ele reconhece com alegria estas obrigações morais e legais.
§ Oitavo, os conservadores promovem comunidades voluntárias, assim como se opõem ao coletivismo involuntário.
Embora os americanos tenham se apegado vigorosamente aos direitos privados e de privacidade, também têm sido um povo conhecido por seu bem sucedido espírito comunitário. Na verdadeira comunidade, as decisões que afetam de forma mais direta as vidas dos cidadãos são tomadas no âmbito local e de forma voluntária. Algumas destas função são desempenhadas por organismos políticos locais, outras por associações privadas: enquanto permanecem no âmbito local e são caracterizadas pelo comum acordo das pessoas envolvidas, elas constituem comunidades saudáveis. Mas quando as funções, quer por deficiência, quer por usurpação, passam para uma autoridade central, a comunidade se encontra em sério perigo. Se existe algo de benéfico ou prudente em uma democracia moderna, isto se dá através da volição cooperativa. Se, então, em nome de uma democracia abstrata, as funções da comunidade são transferidas para uma coordenação política distante, o governo verdadeiro, através do consentimento dos governados, cede lugar para um processo de padronização hostil à liberdade e à dignidade humanas.
Uma nação não é mais forte do que as numerosas pequenas comunidades pelas quais é composta. Uma administração central, ou um grupo seleto de administradores e servidores públicos, por mais bem intencionado e bem treinado que seja, não pode produzir justiça, prosperidade e tranqüilidade para uma massa de homens e mulheres privada de suas responsabilidades de outrora. Esta experiência já foi feita; e foi desastrosa. É a realização de nossos deveres em comunidade que nos ensina a prudência, a eficiência e a caridade.
§ Nono, o conservador percebe a necessidade de uma prudente contenção do poder e das paixões humanas.
Politicamente falando, poder é a capacidade de se fazer aquilo que se queira, a despeito da aspiração dos próprios companheiros. Um estado em que um indivíduo ou um pequeno grupo é capaz de dominar as aspirações de seus companheiros sem controles é um despotismo, quer seja monárquico, aristocrático ou democrático. Quando cada pessoa pretende ser um poder em si mesmo, então a sociedade se transforma numa anarquia. A anarquia nunca dura muito tempo, já que, sendo intolerável para todos e contrária ao fato irrefutável de que algumas pessoas são mais fortes e espertas do que seus próximos. À anarquia sucede a tirania ou a oligarquia, nas quais o poder é monopolizado por pouquíssimos.
O conservado se esforça por limitar e balancear o poder político para que não surjam nem a anarquia, nem a tirania. No entanto, em todas as épocas, homens e mulheres foram tentados a derrubar os limites colocados sobre o poder, a favor de um capricho temporário. É uma característica do radical que ele pense o poder como uma força para o bem – desde que o poder caia em suas mãos. Em nome da liberdade, os revolucionários franceses e russos aboliram os limites tradicionais ao poder; mas o poder não pode ser abolido; e ele sempre acha um jeito de terminar nas mãos de alguém. O poder que os revolucionários pensavam ser opressor nas mãos do antigo regime, tornou-se muitas vezes mais tirânico nas mãos dos novos mestres do estado.
Sabendo que a natureza humana é uma mistura do bem e do mal, o conservador não coloca sua confiança na mera benevolência. Restrições constitucionais, freios e contrapesos políticos (checks and balances), correta coerção das leis, a rede tradicional e intricada de contenções sobre a vontade e o apetite – tudo isto o conservador aprova como instrumento de liberdade e de ordem. Um governo justo mantém uma tensão saudável entre as reivindicações da autoridade e as reivindicações da liberdade.
§ Décimo, o pensador conservador compreende que a estabilidade e a mudança devem ser reconhecidas e reconciliadas em uma sociedade robusta.
O conservador não se opõe ao aprimoramento da sociedade, embora ele tenha suas dúvidas sobre a existência de qualquer força parecida com um místico Progresso, com P maiúsculo, em ação no mundo. Quando uma sociedade progride em alguns aspectos, geralmente ela está decaindo em outros. O conservador sabe que qualquer sociedade sadia é influenciada por duas forças, que Samuel Taylor Coleridge chamou de Conservação e Progressão (Permanence and Progression). A Conservação de uma sociedade é formada pelos interesses e convicções duradouros que nos dão estabilidade e continuidade; sem esta a Conservação as fontes do grande abismo se dissolvem, a sociedade resvala para a anarquia. A Progressão de uma sociedade é aquele espírito e conjunto de talentos que nos instiga a realizar uma prudente reforma e aperfeiçoamento; sem esta Progressão, um povo fica estagnado. Por isto, o conservador inteligente se esforça por reconciliar as reivindicações da Conservação e as da Progressão. Ele pensa que o progressista e o radical, cegos aos justos reclamos da Conservação, colocariam em perigo a herança que nos foi legada, num esforço de nos apressar na direção de um duvidoso Paraíso Terrestre. O conservador, em suma, é a favor de um razoável e moderado progresso; ele se opõe ao culto do Progresso, cujos devotos crêem que tudo o que é novo é necessariamente superior a tudo o que é velho.
O conservador raciocina que a mudança é essencial para um corpo social da mesma forma que o é para o corpo humano. Um corpo que deixou de se renovar, começou a morrer. Mas se este corpo deve ser vigoroso, a mudança deve acontecer de uma forma harmoniosa, adequando-se à forma e à natureza do corpo; do contrário a mudança produz um crescimento monstruoso, um câncer que devora o seu hospedeiro. O conservador cuida para que numa sociedade nada nunca seja completamente velho e que nada nunca seja completamente novo. Esta é a forma de conservar uma nação, da mesma forma que é o meio de conservar um organismo vivo. Quanta mudança seja necessária em uma sociedade, e que tipo de mudança, depende das circunstâncias de uma época e de uma nação.
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Estes são os dez princípios que tiveram grande destaque durante os dois séculos do pensamento conservador moderno. Outros princípios de igual importância poderiam ter sido discutidos aqui: a compreensão conservadora de justiça, por exemplo, ou a visão conservadora de educação.
Eric Voegelin costumava dizer que a grande linha de demarcação na política moderna não é a divisão entre progressistas de um lado e totalitários do outro. Não! De um lado da linha estão todos os homens e mulheres que imaginam que a ordem temporal é a única ordem e que as necessidades materiais são as únicas necessidades e que eles podem fazer o que quiserem do patrimônio da humanidade. No outro lado da linha estão todas as pessoas que reconhecem uma ordem moral duradoura no universo, uma natureza humana constante e deveres transcendentes para com a ordem espiritual e a ordem temporal.
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EXCERTOS DO LIVRO
"AS IDEIAS CONSERVADORAS"
DE JOÃO PEREIRA COUTINHO
"O conservadorismo não existe. Existem conservadorismos, no plural, porque plurais foram as diferentes expressões da ideologia no tempo e no espaço".
"A Revolução Francesa, e a reação a ela personificada no irlandês Edmund Burke, permitiu que o conservadorismo se autonomizasse como uma resposta antirrevolucionária e, no caso de Burke, antiutópica também".
"Todos somos conservadores. Pelo menos em relação ao que estimamos".
"Ser conservador, então, é preferir o familiar ao desconhecido, o testado ao nunca testado, o fato ao mistério, o atual ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao abundante, o conveniente ao perfeito, o riso presente à felicidade utópica". (Michael Oakeshott)
"Uma disposição política conservadora não recusa apenas as ambições utópicas (e futuras) dos revolucionários. Ela permite, igualmente, distinguir o conservador da sua caricatura habitual: o reacionário. Nas palavras de Anthony Quinton, o reacionário não será mais do que um "revolucionário do avesso: alguém interessado em efetuar um corte semelhante com o 'riso presente', de forma a precipitar a sociedade, não para uma 'felicidade utópica' futura, mas para uma 'felicidade utópica' passada".
"Não existe uma distinção válida entre 'mudar para trás' e 'mudar para a frente'. Mudança é mudança; a história não se retrai nem se repete; e toda a mudança se afasta do status quo". (Samuel Huntington)
"As palavras de Huntington são importantes porque relembram uma verdade que os reacionários tendem a esquecer: a utopia, entendida como um estado de perfeição a ser construído por vontade dos homens, não é exclusivo dos revolucionários que eles tanto abominam. Histórica e conceptualmente, e tal como Isaiah Berlin deixou claro nos seus melhores textos, é possível encontrar radicais utópicos nos dois extremos do horizonte político. Historicamente, porque o pensamento utópico sempre projetou no passado ou no futuro a 'solução final' para as iniquidades que afligem o presente. E, conceptualmente, porque reacionários e revolucionários parecem atribuir às suas particulares utopias as mesmas feições exteriores: um mundo harmonioso, estático e onde os homens, porque dotados de uma natureza fixa e inalterável, desejam necessariamente as mesmas coisas".
"O conservadorismo político recusa os apelos do pensamento utópico, venham eles de revolucionários ou reacionários. Mas o conservadorismo não se limita apenas a recusar esses apelos utópicos, que fazem da fuga para o futuro (ou para o passado) um programa de ação no momento presente. O conservadorismo, por entender o potencial de violência e desumanidade que a política utópica transporta, irá também reagir defensivamente a tais apelos - e 'reagir' é a palavra crucial para entender o conservadorismo como ideologia".
"... para ele (Huntington), essa ausência de uma cartilha a priori (e de 'conservadores utópicos' dispostos a lutar e até morrer por ela), para além de ser uma virtude em si mesma, revela também o tipo de ideologia que o conservadorismo será: uma ideologia que, ao contrário das rivais, tenderá a emergir quando 'os fundamentos da sociedade são ameaçados'".
"O liberalismo e o socialismo democrático, apesar de suas múltiplas roupagens temporais ou espaciais, são capazes de partilhar um ideário que lhes confere uma reconhecível identidade. E, pela mesma ordem de ideias, uma sociedade será tão mais desejável quanto maior for a liberdade (para um liberal) ou a igualdade (para um socialista democrático) nela existentes. Isso não parece acontecer na ideologia conservadora. "O conservadorismo é uma ideologia posicional", explica Huntington, na medida em que procura "enfrentar uma necessidade histórica específica". Consequentemente, "quando essa necessidade desaparece, a filosofia conservadora submerge".
"Enganam-se assim os que pensam que o conservadorismo não é uma ideologia. Para Huntington, esse engano recorrente só poderá ser explicado se partirmos do pressuposto de que todas as ideologias têm de ser obrigatoriamente "ideologias ideacionais", ou seja, ideologias que procuram cumprir em sociedade um programa ou um ideário políticos. O fato de o conservadorismo, pela sua natureza reativa e posicional, não ser uma ideologia ideacional não significa que ele não é também uma ideologia".
"O conservadorismo poderá ser assim apresentado como uma "ideologia de emergência" - e no duplo sentido da expressão: porque emerge em face de uma ameaça específica de caráter radical; e porque o faz quando essa ameaça põe em risco os fundamentos institucionais da sociedade. Quando, na sua autobiografia intelectual, o filósofo Roger Scruton confessa que se descobriu conservador ao confrontar-se com a insurreição de Maio de 1068, em Paris, ele apenas retomava um velho cardápio iniciado por Burke no fim do século XVIII, e também a propósito de um acontecimento francês (et pour cause...): a Revolução de 1789. Será perante a Revolução que o parlamentar irlandês irá elaborar a suprema defesa conservadora. Não em nome do passado ou do futuro - mas em nome do presente da civilização europeia".
"...'os meios criminosos, uma vez tolerados, são rapidamente os preferidos'. Nas suas 'Reflexões', Burke antecipava a lógica sinistra dessa violência 'necessária' e 'purificadora' que os movimentos totalitários do século XX levariam a outros extremos de desumanidade".
"O conservadorismo pode ser encarado, portanto, como uma ideologia. Mas não será uma ideologia ideacional e ativa, como as restantes. Aceitando como princípio de análise a proposta de Huntington, o conservadorismo será antes uma ideologia posicional e reativa: é perante uma ameaça concreta aos fundamentos institucionais da sociedade que a ideologia conservadora desperta, reage e se define".
Os trechos destacados acima me fizeram entender a razão pela qual eu, há alguns anos, vinha dizendo que "Lula me levou para a direita". Foram os excessos dele e de seu partido, ameaçando o que considero os fundamentos de uma sociedade civilizada, que me fizeram abandonar o meu confortável e politicamente correto bom-mocismo social-democrata e me transformar em um conservador.
"Todos somos conservadores, repito. Mas, pela mesma ordem de ideias, todos podemos ser criaturas reativas, que acordam do seu sono profundo sempre que uma ameaça ronda as nossas instituições e os nossos valores mais preciosos".
"Em 'The Politics of Imperfection', Anthony Quinton identificou nas páginas inaugurais o primeiro princípio estrutural do conservadorismo - a imperfeição humana".
"Não é necessário apelar para a Cidade Celeste de forma a explicar as imperfeições da terrestre. O que existe cá embaixo chega e sobra para definir os limites epistemológicos dos seres humanos. São esses limites que, segundo Quinton, desautorizam 'projetos de mudança grandiosos e abstratos levados a cabo por pensadores isolados das realidades práticas da vida política".
"A complexidade dos fenômenos sociais não pode ser abarcada, muito menos radicalmente transformada rumo à perfeição, por matéria tão precária".
"Como avisa Oakeshott, a crítica conservadora lidará não com a razão, mas com o racionalismo, entendido como uma subversão da razão. Ou, talvez, de forma mais precisa, com a ambição desmedida de atribuir à razão a tarefa hercúlea de construir e reconstruir a sociedade humana de forma radical e perfeita. Não é a razão per se que inspira a crítica conservadora; é, tão só, a arrogância do racionalismo moderno e a sua ideia nefasta de 'possibilidade infinita' na condução dos assuntos humanos".
"Foi essa confiança cega na 'teoria', e apenas na 'teoria', que levou Alexis de Tocqueville a denunciar nas páginas de 'O Antigo Regime e a Revolução' a criminosa ambição dos revolucionários de fazerem uma Constituição de acordo com as regras da lógica - e não com a observação, a prudência e a experiência, que são virtudes insubstituíveis do exercício político. Aqui residia o problema fundacional da Revolução Francesa: confundir a política com um cálculo matemático; e os seres humanos de uma comunidade real com enunciados de uma mera equação. Tudo em nome de um estado perfeito que, obviamente, existia apenas na cabeça dos filósofos".
"É pela recusa de uma tal caricatura que o pensamento conservador procura recentrar a discussão política na imperfeição intelectual dos seres humanos".
"Sabemos menos do que pensamos, e erramos mais do que devemos, começa por relembrar o conservador".
"Robert Merton fala de 'consequências fortuitas' na ação social, ou seja, de consequências que escapam ao agente no momento em que este decide atuar politicamente. Essas 'consequências fortuitas' referem-se não ao conhecimento que possuímos - mas ao conhecimento que não possuímos porque não o podemos obter antecipadamente. E que pode subverter de forma trágica as mais nobres intenções primevas".
"A carta de Burke, que será expandida com outro dramatismo e violência nas 'Reflexões' propriamente ditas, começa por questionar diretamente o interlocutor francês [Charles-Jean-Francois Depont] sobre as imperfeições intelectuais dos homens na busca quimérica e incontrolada de um estado de perfeição terrena. Serão os homens capazes de atingi-lo? E, mesmo que o fossem, como garantir que existe uma ligação direta entre aquilo que se deseja, por mais nobre que seja, e aquilo que se obtém no final?".
"O ceticismo conservador não é uma forma de fatalismo - nem, a rigor, de pessimismo".
"A política não é um jogo de cassino em que se aposta livremente 'a essência e o sangue dos outros'".
"Os excessos da razão, dirá um conservador, são tão perniciosos quanto a sua ausência. Atuar politicamente será sempre atuar escolhendo a via media entre os extremos - uma caminhada em que o estadista, precisamente para não ceder aos apelos ilusórios do radicalismo racionalista (ou irracionalista), avança sempre 'sensível à sua própria cegueira' e, ainda segundo Burke, com um apurado 'sentido da sua própria fraqueza'".
"Para regressas a Oakeshott, trata-se de um çonhecimento prático' que terá em conta o inescapável papel das tradições e das circunstâncias".
"O conservadorismo apresenta-se como uma ideologia posicional: ele necessita de uma ameaça concreta para se articular como ideologia".
"Em face das ideologias mais extremas, uma dupla atenção às circunstâncias começa por desautorizar esse violento repúdio ao presente que parece definir a teoria e a prática de revolucionários ou reacionários. Não é pela recusa das circunstâncias, antes pela sua observação atenta, que o conservadorismo começará por se afirmar como ideologia".
"Nas palavras de Burke, 'as circunstâncias dão a cada princípio político a sua cor distinta e efeito discriminatório'. Em política, não caberá aplicar sobre a sociedade um programa elaborado em abstrato,por mais perfeito ou intelectualmente substancial que ele seja. Desde logo, e uma vez mais relembrando Burke, porque 'nada de universal pode ser racionalmente afirmado sobre qualquer assunto moral ou político".
"De um estadista espera-se, em primeiro lugar, que ele conheça as circunstâncias nas quais se inscreve a possibilidade de ação política. São elas que apontam para a desejabilidade (ou não) de determinados cursos de ação. Conforme escreveu Berlin, ao defender o 'sentido da realidade'que deve presidir à atuação política - essa capacidade para entender a realidade tal como ela é e não como deveria ser à luz dos nossos projetos, desejos ou sentimentos particulares -, o estadista 'realista' não surge perante a comunidade 'possuído pelo seu brilhante e coerente sonho' e interessado em submeter todos a esse sonho, que para muitos poderá transfigurar-se em pesadelo. De um estadista espera-se, antes, que ele seja capaz de captar as 'permanentemente mutáveis cores dos acontecimentos e os sentimentos e as atividades humanas: é essa capacidade para valorizar a singularidade que determinará a natureza singular da sua ação".
"Burke vislumbrou na Revolução Francesa o seu caráter perfectibilista e destrutivo (ou, melhor ainda, destrutivo porque perfectibilista)".
"Cada situação, cada circunstância, convida a uma resposta particular. No século XIX, Disraeli foi também capaz de identificar (e suprimir) o fosso político potencialmente perigoso entre as classes trabalhadoras e a aristocracia, alargando o direito de voto às primeiras (com o informalmente designado Reform Act, de 1867) e garantindo até mesmo direitos trabalhistas (a legalização de sindicatos, o direito à greve etc), que seriam anátema para a rigidez de algum pensamento conservador da Europa continental. Não admira que, como afirma Viereck em análise certeira dos governos de Disraeli, o conservadorismo britânico se orgulha por adotar inovações de esquerda quando elas mostram a sua validade perante os testes da experiência e das necessidades do momento".
"A 'maleabilidade' conservadora na atenção às circunstâncias será a expressão mais evidente do seu pluralismo político".
"O estadista prudente é aquele que começa por reconhecer a verdade do pluralismo, ou seja, a natureza circunstancial e condicional de valores múltiplos e rivais em determinadas circunstâncias".
"Pela mesma ordem de ideias, não é função do estadista conceder a determinados valores, sempre e em qualquer contexto, primazia sobre os restantes. Um conservador entende que a realidade é sempre mais complexa, e mais diversa, que a simplificação apaziguadora das cartilhas ideológicas. Uma vez afastada a 'falácia agregadora' de que fala Scruton )a falácia de que todos os valores - liberdade, igualdade, fraternidade - serão combináveis na sua expressão máxima), ao estadista cabe a função mais modesta de escolher e equilibrar valores múltiplos e concorrentes. 'Seja a liberdade, seja a igualdade, elas estão entre os fins prioritários perseguidos pelos seres humanos ao longo de muitos séculos', escreveu Berlin. Para logo depois avisar: 'Mas a total liberdade para os lobos é a morte dos cordeiros".
"Existem 'valores primários' que nós reconhecemos como tais, isto é, valores universais e objetivos requeridos por todas as vidas boas. Esses 'valores primários' não apenas se apresentam como a base moral de qualquer sociedade civilizada; eles são a condição para a existência de um universo pluralista e das escolhas necessárias que o agente político poderá efetuar. Nenhuma sociedade se poderá reclamar como civilizada se, anteriormente a qualquer escolha relativa, não existirem valores mínimos que tornem, desde logo, essa escolha possível. E esses valores mínimos decorrem de uma concepção universal de natureza humana que indicará não aquilo que os indivíduos devem fazer, mas o que não devem nem podem fazer".
"Kieron O'Hara relembra-nos como a injustiça, o crime, a guerra civil, a pobreza - todos esses males - são objetivos, e não relativos, porque reconhecíveis e reconhecidos como males por qualquer sociedade. E quando eles ocorrem perante nossos olhos, é natural que 'males primários' despertem o nosso 'desgosto moral'. Trata-se de um sentimento de injustiça que é assim reconhecido imediatamente, instintivamente, naturalmente. E, como defende Scruton, esse é um sentimento que não pode ser eliminado por nenhum poder despótico, nem por nenhum processo de 'reeducação'. 'O melhor que um déspota consegue fazer', conclui, 'é evitar a sua expressão em público".
"Propor uma receita antes do entendimento é um gesto sentimental: implica olhar para a sociedade como uma desculpa para a emoção política... De forma a evitar o sentimentalismo temos que reconhecer que a sociedade também tem uma vontade e que uma pessoa racional tem que estar aberta à sua persuasão. Esta vontade encontra-se, para o conservador, plasmada na história, nas tradições, na cultura e no preconceito".
"Converteu-se em clichê a ideia risível de que os conservadores vivem agarrados às suas 'tradições'. O conservador, nessa visão caricatural, surge medrosamente apegado a velhos costumes ou instituições pelo medo instintivo de os perder ou substituir por outros. Perante esse quadro fóbico, o conservadorismo, mais do que um caso político, seria, sobretudo, um caso clínico".
"Mas será apenas por isso, por esse temor da perda, que os conservadores valorizam as tradições que sobreviveram aos diferentes 'testes do tempo'? A resposta está contida na própria pergunta: eles valorizam as tradições, pois estas, justamente, sobreviveram aos 'testes do tempo'. E essa sobrevivência começa por revelar a qualidade e a validade dessas mesmas tradições, o que recomenda a sua proteção presente".
"Mas as tradições que importam a um conservador não são apenas as que resultam ou resultaram de um ato consciente de criação humana. As tradições mais profundas foram emergindo naturalmente, o que significa que elas foram sobrevivendo naturalmente porque sucessivas gerações encontraram nelas vantagens que aconselharam a sua manutenção".
"Elas são nossas porque se tornaram nossas. E o fato de continuamente as termos considerado vantajosas e valiosas permitiu que as legássemos de geração em geração como se fossem uma herança coletiva. Ao serem úteis e benignas para nós, é razoável pensar que elas também o serão para aqueles que virão depois de nós".
"Atento como poucos às circunstâncias que rodeiam a sua conduta, e sobretudo àquelas que são potencialmente disruptoras ou revolucionárias, o conservador não é estranho a situações de pobreza e exclusão que impedem muitos seres humanos de se beneficiar do patrimônio moral e institucional de uma sociedade".
"Partindo desse imperativo de conservação de princípios ou instituições que se consideram importantes para a comunidade presente, o conservador vai retirar das tradições os seus ensinamentos fundamentais. Em primeiro lugar, as tradições começam por ter uma função educacional evidente. Para usar a liguagem poética de Oakeshott, são as tradições de uma comunidade que permitem ao indivíduo, isoladamente considerado, entrar na 'grande conversa da humanidade'. As tradições fornecem aos indivíduos a gramática básica dessa conversa, impedindo que estes se tornem, nas palavras de Burke, meras 'moscas de um verão': existências breves., desgarradas e desabitadas de qualquer referência social, cultural ou moral".
"Como afirmaria Burke, são as tradições que cobrem a 'natureza nua' dos indivíduos com as vestes do costume e do hábito".
"Como relembra ainda Oakeshott, a 'grande conversa da humanidade' é um processo em que existem e coexistem três tempos: o passado, o presente e o futuro. O que significa que: ao indivíduo cabe receber o que foi preservado; desfrutar dessa herança como fiel depositário; e passá-la às gerações vindouras em uma cadeia que se percebe como invisível e interminável".
"Para Burke, a sociedade seria um contrato 'entre os vivos, os mortos e os que estão para nascer".
"Em nenhum momento das 'Reflexões' Burke concede aos mortos essa dogmática ascendência sobre os vivos. Sua intenção foi, antes, alargar os horizontes limitados do estadista presente, alertando-o para a sua circunstancial pequenez humana. Escutar os mortos, ou pensar nos que estão para nascer, começará por relembrar aos vivos a sua natureza transitória num mundo que não lhes pertence, exceto por empréstimo. Os mortos, tal como os escravos do imperador Marco Aurélio, também nos segredam ao ouvido a nossa própria condição mortal. Somos 'inquilinos temporários' de um mundo de 'inquilinos temporários'. É por estar consciente de sua transitoriedade que o agente político precisa atuar sem caprichos momentâneos, recusando o papel de 'legislador da humanidade'. O estadista nunca atua sobre uma tela em branco, nem a sociedade se apresenta como tal, despojada de valores ou tradições que são anteriores a nós e que vão sobreviver a nós".
"O tempo atual não foi brando com certos termos da gramática conservadora - e 'preconceito' é um deles. Ter 'preconceito' é hoje o supremo crime, sobretudo quando a 'filosofia da vaidade' - o epíteto com que Burke brinda o sentimentalismo de Rousseau - aconselha os homens a se apresentarem sem preconceitos, num estado de pureza original que provavelmente só existiria no tempo das cavernas. Ironicamente, essa é uma hipótese que coloca os mais radicais progressistas no mesmo patamar a-histórico dos mais radicais reacionários".
"Preconceito deve ser entendido no sentido clássico, ou seja, como praejudicium - um precedente ou um julgamento baseado em decisões ou experiências passadas que, pela sua validade comprovada, informam decisões ou experiências presentes e futuras. Será essa dimensão de 'preconceito' que interessa a um conservador: o tempo trouxe até ele princípios ou instituições que sobreviveram aos 'testes do tempo'; essa sobrevivência cria uma razão favorável à manutenção e conservação de tais princípios ou instituições. E será a eles que devemos recorrer como se recorre a ensinamentos válidos e testados. Ou, melhor dizendo, válidos porque testados".
"A ideologia conservadora tende sempre a olhar para a sociedade como um organismo vivo. E, conforme lembra Anthony Quinton sobre esse princípio organicista, um 'organismo vivo' é, pela sua própria definição, dotado de vida própria, ou seja, de evolução e transformação. Pretender reverter essa evolução e transformação, como se isso fosse possível ou até desejável, seria não apenas uma quimera lunática, própria de lunáticos, e por isso destinada ao fracasso. Pior que isso, seria um esforço conducente ao tipo de sociedades totalitárias em que o século XX foi tristemente pródigo: sociedades em que o poder político teria que limitar, ou até determinar, o comportamento de todos os seus membros".
"A reforma não só exclui como exige uma tradição, entendida como ponto de partida para qualquer ação reformista. Reformamos o que existe e, mais importante ainda, reformamos porque algo existe e porque algo chegou até nós. Tal como defende Karl Popper, as tradições são a base de qualquer atuação política porque elas oferecem ao agente 'algo sobre o qual podemos operar' e 'algo que podemos criticar e mudar'. No fundo, Popper reatualiza o que Burke afirmara duzentos anos antes, quando este definio a política como um exercício em que é preciso respeitar 'um princípio seguro de conservação e um princípio seguro de transmissão, sem excluir um princípio de melhoria'. Conservação, transmissão, melhoria: a ordem dos fatores não é arbitrária".
"As tradições são o ponto de partida de qualquer ação reformista consequente e prudente. Mas é possível também afirmar que a reforma é, ela própria, um importante mecanismo de conservação. 'Um estado sem a possibilidade de alguma mudança é incapaz de se conservar', dirá Burke em uma das suas proclamações mais conhecidas. A reforma é necessária para se preservar (e melhorar) o que se encontra em risco - um imperativo que devia ter sido acautelado na França pré-revolucionária. Utilizando com maestria as metáforas arquitetônicas que são recorrentes ao longo das 'Reflexões', o país é apresentado como um velho edifício de paredes degradadas. Mas o estado do edifício não justifica a sua demolição pura e simples; exigia, pelo contrário, reparar essas paredes, mantendo o edifício de acordo com a sua velha forma".
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