QUE SAIS-JE?
Quando, em pleno século XXI, assistimos, mais uma vez, à barbárie tomando conta do Oriente Médio, teatro macabro que mais se parece com um continuum de desvario, desinteligência, arrogância, ódio, rancor, somos obrigados a valorizar ainda mais o gênio do ensaísta francês Michel de Montaigne.
Nascido em 1533, publicou uma única, mas imorredoura, obra – Ensaios - quando tinha meros 36 anos. Nela, ele antecipa o que os nossos antropólogos, quatro séculos depois, viriam a chamar de “relativismo cultural”, uma das mais importantes ferramentas na luta contra os preconceitos e as intolerâncias.
Sua capacidade de ousar, inovar e pensar à frente da sua época (avant la lettre, diriam os franceses), é ainda mais notável quando se verifica que a publicação da obra ocorreu justamente no período de maior intolerância em seu país, culminando, três anos depois, no trágico Massacre da Noite de São Bartolomeu, episódio sangrento em que os reis franceses (católicos) reprimiram os protestantes (chamados de huguenotes).
As matanças, organizadas pela casa real francesa, começaram no dia 24 de agosto, dia de São Bartolomeu, de 1572, e duraram até outubro, inicialmente em Paris e depois em outras cidades francesas, vitimando entre 70.000 e 100.000 protestantes franceses.
Relatos dão conta de que, por um bom tempo, ninguém comia peixe, pois durante meses surgiam cadáveres boiando nos rios. É sabido, também, que o Papa Gregório XIII ficou muito feliz com a notícia do massacre, mandando que os sinos de Roma ressoassem para um dia de graças. Além disso, mandou cunhar uma medalha comemorativa em honra da ocasião e encomendou ao pintor Giorgio Vasari um mural celebrando o massacre.
Pois é nesse cenário de beligerância, cizânia, discórdia e hostilidade que o gênio de Montaigne consegue elaborar uma louvação à tolerância, à generosidade, à transigência, à concórdia.
Num dos ensaios, o 31° do primeiro livro, intitulado Deuses Canibais, o ensaísta revela as impressões colhidas em conversas com um seu serviçal, que vivera muito tempo naquela outra parte do mundo que Villegaignon chamou de França Antártica. “Não existe nada de bárbaro e de selvagem naquele povo (...) cada um chama de barbárie aquilo que não está nos seus costumes; como realmente parece que nós não temos outra pedra de toque da verdade e da razão senão o exemplo e a idéia das opiniões e das usanças dos países em que estamos. Nesse lugar encontram-se sempre a religião perfeita, o regime perfeito, o uso perfeito e refinado de cada coisa”.
Depois de lembrar das crueldades e desumanidades praticadas pela Santa Inquisição, Montaigne conclui: “Nós bem que podemos chamá-los de bárbaros, considerando as regras da razão, mas não com respeito a nós mesmos, que os superamos em toda espécie de barbárie”.
Com a agudização dos conflitos no Líbano e Israel e a aproximação dos embates eleitorais por aqui, vale lembrar a divisa que o sábio, e por isso humilde, Montaigne mandou estampar no seu brasão: "Que sei eu?".
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