23 outubro 2007

Blog Reinaldo Azevedo
sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Tio Rei tranqüiliza os “aspiras” da esquerda intelectual

Capitão Nascimento, o kantiano rústico, como o chamei em artigo na VEJA, continua a ser alvo dos foucaultianos polidos. Os "aspiras" da esquerda intelectual são mesmo idealistas. Marx olharia pra eles com desconsolo. Gastou mais tinta e papel com os mortos de mentirinha de Tropa de Elite — é chato lembrar, sei disso, mas o filme é ficção, viu, pessoal!? — do que com os de verdade nos morros do Rio. Eu entendo o motivo. Acreditem: a exemplo do que acontece com o narcotráfico, também esta é uma disputa por território.

Diretor, roteiristas, atores, todos eles já foram levados a fazer um mea-culpa e a negar, de pés juntos e mãos postas, que o filme defenda a tortura ou a ilegalidade. E não defende mesmo, é claro. Se as platéias aplaudem aqui e ali — no cinema em que vi, as pessoas ficaram muito comportadas —, é porque, de fato, se cansaram da corrupção da polícia e da política, da inércia do estado, do abandono a que estão relegadas. Sim, talvez fosse de bom tom que essa gente não fosse tão malcriada e entendesse os motivos de nossos bandoleiros primitivos. Mas vocês sabem como esse povo está sempre muito abaixo da moralidade de nossos intelectuais.

Volto ao ponto. A despeito de todos os atos de contrição das pessoas envolvidas com o filme, resta a obra. E ela, de fato, não perdoa a doce tolerância ou conivência da classe média — da Dona Zelite — com o narcotráfico. É a primeira vez que o cinema brasileiro se abre para o dissenso. Pouco me importa se seus realizadores queriam isso. É o que acabou acontecendo. E o filme é um sucesso.

A esquerda intelectual reage porque não quer esse estranho em seu ninho. Que papo é esse, agora, de lembrar que as pessoas têm responsabilidades individuais e fazem escolhas? Isso é terrível porque questiona um edifício teórico gigantesco. No dia em que o pobre ou o rico não mais forem vistos segundo as lentes da alienação ou da má consciência, o esquerdista não terá mais como entender o mundo. De fato, o seu “oprimido” não é uma pessoa, mas um dado de uma equação.

Queria tranqüilizar os mais nervosos, os "aspiras". Tudo voltará a seu eixo em breve. Trata-se apenas de um filme, não de uma nova era. Na história do cinema mundial, Capitão Nascimento não é o primeiro “malvado” a se tornar ídolo. O próprio José Padilha já lembrou o caso e é fato: quem não torcia por Michael Corleone, por exemplo? O Brasil fez seu primeiro filme (nos EUA, por exemplo, há milhares) em que a polícia também tem um discurso. Mas isso não mudará o padrão de resignação de Banânia.

Relaxe, 01!!! Pode voltar, como diria Drummond, a se ocupar de estrelas e outros “substantivos celestes” porque a maioria dos nossos artistas continuará a promover a justiça social nas telas, nas novelas, até nas tirinhas de humor dos jornais. Se há coisa que o Brasil produz com competência ímpar é justiça social na ficção. Com o apoio da Petrobras, da Caixa e da Lei Rouanet.

Tropa de Elite é exceção — daí o espantoso sucesso. A regra continuará a ser filmes “esquerdisticamente” corretos e sem público. Como diria o Apedeuta: “tranquilis”. Não há a menor chance de “a direita” invadir o Morro do Alemão mental que dá as cartas na produção cultural.

21 outubro 2007

Blog Reinaldo Azevedo
Sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Duas vergonhas do Ministério Público Federal em Goiás
Leia o que vai no site Última Instância. Volto depois:

O MPF (Ministério Público Federal) em Goiás ajuizou ação civil pública, com pedido de liminar, contra a Faculdade Alfa (Faculdade Alves Faria), Marconi Perillo (senador da República), Valéria Perillo e a União Federal por concessão de tratamento privilegiado a agente político.
De acordo com a procuradora da República Mariane Guimarães de Mello Oliveira, a Faculdade Alfa, localizada em Goiânia, sob a justificativa de atender necessidades especiais de Marconi Perillo, montou uma turma especial no curso de direito com apenas dois alunos: o senador e sua esposa, Valéria Perillo.
Para tanto, a instituição de ensino superior organizou sua estrutura física e seus professores, com sala de aula exclusiva, apartada do convívio com os demais estudantes. A nova turma conta com horários de aula especiais, exclusivamente às segundas, sextas e sábados pela manhã, para atender a conveniência do senador e sua esposa, conferindo-lhes condições privilegiadas de acesso às aulas.
Para o MPF o fato viola os princípios da isonomia e da generalidade na prestação de serviços públicos, configura tratamento seletivo e privilegiado sem previsão constitucional ou legal e viola as diretrizes e bases da educação nacional, previstas na Constituição da República e na Lei 9.394/96.
O MPF pediu a concessão de liminar, para determinar à Alfa que encerre imediatamente a turma especial do curso de direito criada para abrigar Marconi Perillo e Valéria Perillo, transferindo-os para salas de aula comuns.
Alternativamente pediu que a Faculdade providencie a abertura da turma especial para os demais alunos, de forma a completar o número de estudantes usualmente admitidos em uma sala de aula normal.
O MPF pediu também, que a Alfa, Marconi Perillo e Valéria Perillo sejam condenados a pagar indenização, a ser revertida para os alunos daquela faculdade, em valor a ser oportunamente calculado, com base no custo de manutenção da sala de aula especial, durante o período em que foi mantida às custas das mensalidades pagas pelos demais estudantes.
A ação foi distribuída para a 9ª Vara Federal de Goiânia.

Voltei
Começo reproduzindo a informação que está num site oficial:
Faculdade Alfa:
Organização Acadêmica: Faculdade
Categoria Administrativa: Privada - Particular em Sentido Estrito

Agora leiam o que foi publicado aqui no dia 20 de agosto:
Há coisas que parecem corriqueiras, irrelevantes, mas que são muito importantes, Leia o que segue. Volto em seguida:
Por Felipe Bächtold, da Agência Folha:
Assentados da reforma agrária e trabalhadores rurais vão ter um curso de direito exclusivo na Universidade Federal de Goiás a partir desta semana. Sessenta alunos vão iniciar amanhã a graduação, que será instalada em um campus na cidade de Goiás.
Um dos articuladores do projeto, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) considera o curso uma oportunidade para qualificar seus integrantes - 39 alunos pertencem ao grupo, segundo a coordenação do movimento.
O vestibular para o curso teve mais de 600 inscrições. Os alunos precisaram comprovar que viviam em assentamentos da reforma agrária ou em terras destinadas à agricultura familiar.
A iniciativa, que é inédita na área de direito no país, segundo a universidade, vai ser financiada por meio de um acordo com o Ministério do Desenvolvimento Agrário. O ministério vai repassar a maior parte dos cerca de R$ 180 mil anuais que vão cobrir os custos da graduação.
O curso superior terá duração de cinco anos e estrutura de uma graduação comum de direito. As disciplinas optativas, porém, terão foco em ambiente e questões voltadas ao direito agrário, segundo a coordenação da faculdade.
De acordo com o MST, um dos objetivos do curso é fortalecer o movimento com novos advogados para "não depender de outras pessoas". "A idéia [de criação do curso] foi justamente para formar nossos próprios advogados", diz José dos Santos, da coordenação estadual do MST.
A aula inaugural será dada amanhã pelo ministro do STF (Superior Tribunal Federal) Eros Grau. A Universidade Federal de Goiás já conta com um curso de pedagogia também voltado para assentados. A graduação tem 80 alunos e iniciou as atividades em fevereiro.
No ano passado, o Ministério Público Federal em Goiás abriu um inquérito para apurar a regularidade dos cursos dirigidos a trabalhadores rurais. A peça foi arquivada porque a Procuradoria concluiu, após audiências públicas com entidades como OAB e Incra, que o projeto era uma ação afirmativa voltada a um grupo "marginalizado" - e não a criação de um privilégio.
Em julho, um curso superior a distância de administração da Universidade Federal de Santa Catarina foi suspenso pela Justiça por destinar vagas apenas para funcionários públicos.

Voltei
Viram só? Imaginem se uma instituição federal, com recursos públicos, desse um curso exclusivamente para proprietários rurais ligados à UDR. Seria um deus-nos-acuda. A “direita”, como eles gostam de dizer, nunca chegaria tão longe. E nem eu estou defendendo que isso aconteça. É claro que se trata de um absurdo. O que o MST está fazendo é formando quadros com dinheiro público — como se, ademais, o movimento já não fosse isto mesmo: uma organização política financiada com recursos do Orçamento.
Por isso, jamais leve a sério qualquer notícia que dê conta do descontentamento do MST com o PT e o governo Lula. Podem divergir aqui e ali, na tática. Mas são expressões do mesmo assalto ao estado patrocinado pela esquerda cartorial brasileira.

Comento
Perguntem quantas ações o Ministério Público Federal ajuizou contra a Universidade Federal de Goiás ou contra o Ministério da Educação? Nenhuma! Vocês entenderam direito. Estamos falando do mesmo Ministério Público e da mesma praça.
Então ficamos assim: se uma faculdade privada decide montar uma turma, ainda que para dois alunos, o que não fere o direito de ninguém — afinal, será sempre um acordo entre entes privados —, o MP considera que isso fere, sei lá, o direito coletivo. Já se uma universidade pública decide mobilizar recursos que são de todos os brasileiros para privilegiar uma categoria, instaura-se o silêncio.
Pode parecer uma questiúncula apenas regional. Não é. Estamos falando de um dos braços do estado — e o Brasil vive sob o estado de direito — que promove o que é uma óbvia perseguição política.
Tanto a ação contra Perillo como o silêncio no que diz respeito ao MST cobrem de vergonha o Ministério Público.
Flagrante: quando o MP pauta o jornalismo, e ele nem pergunta por quê
Não adianta. É uma maquinaria infernal.
A imprensa costuma comer pela mão do Ministério Público sem questionamento. A Folha também noticia. Título: “Senador tem curso superior só pra ele”. As informações são as mesmas que estão no meu texto. Só não fica evidente que se trata de uma faculdade privada.
Reitero: a Universidade Federal de Goiás, que é pública, dá um curso que é exclusivo para militantes do MST. Contra Perillo, a procuradoria observa: “até na monarquia britânica os herdeiros estudam em turmas comuns". É proselitismo vagabundo. E um curso ministrado com dinheiro público numa instituição idem a toda uma aristocracia do "movimento social"?
Os procuradores também podem estar em desvio de função. São pagos para zelar pelo bom uso do que é público. Em vez disso, deixam correr solta, na Universidade Federal de Goiás, a agressão ao princípio de que todos são iguais perante à lei para se meter num contrato entre entes privados que nada tem de ilegal.
O Estadão também noticia o caso. Traz um dado importante: o curso foi autorizado pelo Ministério da Educação.

CASO LUCIANO HUCK - MUITO JOIO, POUCO TRIGO

FOLHA DE S. PAULO
segunda-feira, 01 de outubro de 2007
TENDÊNCIAS/DEBATES

Pensamentos quase póstumos
LUCIANO HUCK
Luciano Huck foi assassinado. Manchete do "Jornal Nacional" de ontem. E eu, algumas páginas à frente neste diário, provavelmente no caderno policial. E, quem sabe, uma homenagem póstuma no caderno de cultura.
Não veria meu segundo filho. Deixaria órfã uma inocente criança. Uma jovem viúva. Uma família destroçada. Uma multidão bastante triste. Um governador envergonhado. Um presidente em silêncio.
Por quê? Por causa de um relógio.
Como brasileiro, tenho até pena dos dois pobres coitados montados naquela moto com um par de capacetes velhos e um 38 bem carregado.
Provavelmente não tiveram infância e educação, muito menos oportunidades. O que não justifica ficar tentando matar as pessoas em plena luz do dia. O lugar deles é na cadeia.
Agora, como cidadão paulistano, fico revoltado. Juro que pago todos os meus impostos, uma fortuna. E, como resultado, depois do cafezinho, em vez de balas de caramelo, quase recebo balas de chumbo na testa.
Adoro São Paulo. É a minha cidade. Nasci aqui. As minhas raízes estão aqui. Defendo esta cidade. Mas a situação está ficando indefensável.
Passei um dia na cidade nesta semana - moro no Rio por motivos profissionais - e três assaltos passaram por mim. Meu irmão, uma funcionária e eu. Foi-se um relógio que acabara de ganhar da minha esposa em comemoração ao meu aniversário. Todos nos Jardins, com assaltantes armados, de motos e revólveres.
Onde está a polícia? Onde está a "Elite da Tropa"? Quem sabe até a "Tropa de Elite"! Chamem o comandante Nascimento!
Está na hora de discutirmos segurança pública de verdade. Tenho certeza de que esse tipo de assalto ao transeunte, ao motorista, não leva mais do que 30 dias para ser extinto. Dois ladrões a bordo de uma moto, com uma coleção de relógios e pertences alheios na mochila e um par de armas de fogo não se teletransportam da rua Renato Paes de Barros para o infinito.
Passo o dia pensando em como deixar as pessoas mais felizes e como tentar fazer este país mais bacana. TV diverte e a ONG que presido tem um trabalho sério e eficiente em sua missão. Meu prazer passa pelo bem-estar coletivo, não tenho dúvidas disso.
Confesso que já andei de carro blindado, mas aboli. Por filosofia. Concluí que não era isso que queria para a minha cidade. Não queria assumir que estávamos vivendo em Bogotá. Errei na mosca. Bogotá melhorou muito. E nós? Bem, nós estamos chafurdados na violência urbana e não vejo perspectiva de sairmos do atoleiro.
Escrevo este texto não para colocar a revolta de alguém que perdeu o rolex, mas a indignação de alguém que de alguma forma dirigiu sua vida e sua energia para ajudar a construir um cenário mais maduro, mais profissional, mais equilibrado e justo e concluir - com um 38 na testa - que o país está em diversas frentes caminhando nessa direção, mas, de outro lado, continua mergulhado em problemas quase "infantis" para uma sociedade moderna e justa.
De um lado, a pujança do Brasil. Mas, do outro, crianças sendo assassinadas a golpes de estilete na periferia, assaltos a mão armada sendo executados em série nos bairros ricos, corruptos notórios e comprovados mantendo-se no governo. Nem Bogotá é mais aqui.
Onde estão os projetos? Onde estão as políticas públicas de segurança? Onde está a polícia? Quem compra as centenas de relógios roubados? Onde vende? Não acredito que a polícia não saiba. Finge não saber.
Alguém consegue explicar um assassino condenado que passa final de semana em casa!? Qual é a lógica disso? Ou um par de "extraterrestres" fortemente armado desfilando pelos bairros nobres de São Paulo?
Estou à procura de um salvador da pátria. Pensei que poderia ser o Mano Brown, mas, no "Roda Vida" da última segunda-feira, descobri que ele não é nem quer ser o tal. Pensei no comandante Nascimento, mas descobri que, na verdade, "Tropa de Elite" é uma obra de ficção e que aquele na tela é o Wagner Moura, o Olavo da novela. Pensei no presidente, mas não sei no que ele está pensando.
Enfim, pensei, pensei, pensei. Enquanto isso, João Dória Jr. grita: "Cansei". O Lobão canta: "Peidei".
Pensando, cansado ou peidando, hoje posso dizer que sou parte das estatísticas da violência em São Paulo. E, se você ainda não tem um assalto para chamar de seu, não se preocupe: a sua hora vai chegar.
Desculpem o desabafo, mas, hoje amanheci um cidadão envergonhado de ser paulistano, um brasileiro humilhado por um calibre 38 e um homem que correu o risco de não ver os seus filhos crescerem por causa de um relógio.
Isso não está certo.
LUCIANO HUCK, 36, apresentador de TV, comanda o programa "Caldeirão do Huck", na TV Globo. É diretor-presidente do Instituto Criar de TV, Cinema e Novas Mídias.
FOLHA DE S. PAULO
terça-feira, 02 de outubro de 2007
PAINEL DO LEITOR

Após ler o artigo de ontem de Luciano Huck ('Pensamentos quase póstumos'), vejo que até a elite brasileira começa a ficar temerosa da abrangência que a violência tomou em nosso país. Assim como o apresentador se viu com um 38 na cabeça e pensou em como seria horrível deixar sua família, milhares de brasileiros vivem isso no dia-a-dia. E nem todos têm a sorte de o bandido não atirar. Quantas e quantas famílias órfãs existem e se espalham pelo nosso país? O número é incontável e crescente. E, assim como Huck, a grande maioria paga seus impostos corretamente. O apresentador acordou de um sonho? Bem-vindo à realidade do Brasil! Se o seu despertar contribuir para acontecer alguma coisa neste país de elites, pode ter certeza de que esse assalto não foi em vão.
JANE CARDOSO COSTA (Belo Horizonte, MG)

Gostaria de dizer a Luciano Huck: bem-vindo ao mundo real. Aqui, crianças chegam à 5ª série sem saber ler, mas chegam, e isso diminui o índice de analfabetismo. Aqui, a gente chega ao posto de saúde e consegue marcar uma consulta - está certo que não é para agora (só em 120 dias), mas a gente consegue. Aqui, pela manhã, pedimos "bença" ao traficante e, à noite, à polícia (afinal, a gente tem que se dar bem com todo mundo...). Aqui, todo mundo sabe o que de errado acontece. A gente sabe quem vende jogo do bicho, quem pede propina, quais são os políticos que roubam. Sabe aquelas maquininhas de jogo, aquelas que são proibidas? Aqui tem um monte. Alguns falam que elas são da polícia, por isso temos de ficar quietos, enquanto nossos pais, depois de um dia de trabalho, perdem ali o dinheiro daquilo que seria o nosso omelete no domingo. Todos nós estamos cansados de gritar, mas nossa voz não é ouvida. De coração, sinto muito que isso tenha acontecido com o apresentador, pois sei o que é ter uma jovem esposa e uma pequena criança nos esperando em casa. Mas, agora que ele faz parte desse nosso seleto grupo, que nos ajude a gritar.
CESAR ALEXANDRE (Osasco, SP)

Depois de a Folha nos presentear com a entrevista com Eric Hobsbawn, nos cobra a paciência de ter que engolir Luciano Huck e sua auto-compadecida situação nada presunçosa, quando sugere o possível noticiário do seu possível desaparecimento no caderno cultural. A partir de agora, poderemos ter na terceira página da Folha os relatos das experiências de assaltos sofridos por apresentadores. Sugiro que o assaltante tenha o direito de resposta.
RICARDO MELLO (Goiânia, GO)

Luciano Huck queixou-se: "onde está a 'Elite da Tropa'? Quem sabe até a 'Tropa de Elite'!". Ele poderia ter sido mais direto e dizer: onde está a 'Tropa DA Elite? '.
FERNANDO DA SILVEIRA (São Paulo, SP)

Os policiais que estão na linha de frente do combate ao crime (todos os que não são delegados ou oficiais da PM) sabemos onde está o "Rolex roubado" do Luciano Huck - metáfora para o Graal da segurança pública brasileira. Mas não vou trocar tiro com bandidos recebendo um salário-base de R$ 568,29 (e, agora, sem o tíquete alimentação de R$ 80, que nos foi retirado em agosto de 2007). Prefiro correr risco no bico para sustentar os meus filhos. Se Huck não está feliz conosco, pode entrar para o movimento "Cansei" e cobrar do governador Serra o motivo de o PSDB ter tanta raiva da polícia paulista e mantê-la na miséria há 14 anos. Eu queria fazer minha inscrição naquele movimento, mas será que aceitam um policial sem dinheiro?
ROGER FRANCHINI (São Paulo, SP)

Entendo a indignação de Huck, mas nenhum super-herói daria conta de estar em dois lugares ao mesmo tempo para impedir um assalto. Nem a "Rota na rua" dá conta de impedir todos os crimes da cidade. O problema é e sempre será a injusta distribuição de renda em nosso país, uma das mais vergonhosas do mundo. Quantos ricos o apresentador conhece (e ele deve conhecer muitos) que estariam dispostos a ajudar a reverter este quadro?
KLEBER EDUARDO MANTOVANI (São Bernardo do Campo, SP)

O senhor Luciano Huck me constrangeu com seu "desabafo". Não pelo fato de ter sido vítima de violência, afinal, era de esperar que "sua hora" chegasse. Mas por achar que, sendo pessoa pública e digna da comoção de uma "multidão", estaria imune a ela. Tenho até pena do senhor Huck, pois ainda acredita que ser cidadão se resuma a votar ou a pagar impostos ou a dirigir uma ONG. Com o espaço de que goza na mídia, com o carisma que lhe renderia uma "homenagem no caderno de cultura" e com a renda que concentra, poderia fazer mais que isso. Caso seu programa se preocupasse não apenas em "fazer este país mais bacana" mas em desenvolver uma consciência crítica no público, talvez nosso país fosse socialmente mais justo. Talvez, se os espectadores fossem incentivados a debater a importância de cada indivíduo na busca de soluções e estimulados a uma participação política ativa, Huck não estaria "à procura de um salvador da pátria".
CLEBER FERREIRA SHIMIZU (Londrina, PR)

FOLHA DE S. PAULO
quarta-feira, 03 de outubro de 2007
PAINEL DO LEITOR

Caramba! Nem a absolvição de Renan provocou tanta indignação dos leitores da Folha quanto o desabafo justo e consciente de um cidadão que paga seus impostos em dia (e, convenhamos, isso é mais do que suficiente) acerca uma violência sofrida. Por que tanta grita? Por que os leitores do jornal se doeram tanto com esse artigo? Só um lembrete: não é obrigação de Luciano Huck acabar com a violência e a desigualdade. Essa obrigação é dos governantes, que foram eleitos e recebem montanhas de impostos para isso. O resto é filosofia barata de botequim.
FERNANDA RAQUEL ALVES (Jundiaí, SP)
A nossa elite (se é que merece ser assim chamada) é mesmo patética. Só mostra indignação com a situação do país quando tem o seu Rolex roubado. Queria ver Luciano Huck escrevendo um texto tão indignado caso presenciasse uma chacina no Capão Redondo.
ZECA BALEIRO, músico (São Paulo, SP)

Ao ler o discurso egocentrado de Luciano Huck, me perguntei: se ele desabafa dizendo que "isso não está certo", o que devem dizer os milhões de brasileiros anônimos que passam fome e não têm a menor idéia do que são políticas públicas, os que não têm luz nem saneamento básico em casa, os que vivem do salário mínimo, os que convivem desde criancinhas com os mais sórdidos tipos de violência e os que pegam quatro horas de condução por dia e são assaltados lá dentro? Isso só para citar alguns exemplos. Fica a pergunta filosófica, tão profunda quanto o desabafo burguês que li: o que é certo?
ANDREA SOUZA (São Paulo, SP)

Em São Paulo, há dois milhões de pessoas vivendo em favelas, segundo dados da prefeitura. São cidadãos que, apesar de "abrirem mão" de uma moradia digna, de saúde, de educação e de transporte de qualidade, direitos mencionados na Constituição, não cansaram, não se indignaram nem peidaram, como tem feito a elite brasileira. O apresentador Luciano Huck terá de abrir mão do seu Rolex, incompatível com um país de contrastes que chegou ao limite. Passar o dia pensando em "como deixar as pessoas mais felizes e em como tentar fazer este país mais bacana" não basta. Se a elite brasileira não aceita abrir mão do que conquistou, o povo não consegue mais viver sem o que nunca teve.
ALFREDO CASEIRO (São Paulo, SP)

Fico triste em constatar que nós, cidadãos brasileiros, sendo do "povo" ou da "elite" - atendendo à divisão imaginária que ainda resiste na mente de algumas pessoas - estamos aceitando a banalização do crime, das ruas à política. O direito de ir e vir em segurança, assim como outros direitos básicos, devem ser assegurados a todos os cidadãos brasileiros, independentemente da classe social. Portanto vamos canalizar a nossa indignação a todas as esferas de governo, sejam elas federais, estaduais ou municipais, e olhar o apresentador Huck apenas como mais um cidadão brasileiro violentado nos seus direitos, sendo esta a questão central.
WILSON APARECIDO DE OLIVEIRA (São Paulo, SP)

FOLHA DE S. PAULO
quinta-feira, 04 de outubro de 2007
PAINEL DO LEITOR
Sinceramente, é muito difícil entender o raciocínio de alguns leitores da Folha neste painel. Parece ser "pecado" ou "crime" Luciano Huck ("Pensamentos quase póstumos", "Tendências/Debates", 1º/10) ser rico e famoso. Será que a dor, o medo e a tristeza desse pai de família não são levados em conta? Por ser abonado, todo sentimento dele é "café com leite", não vale ou é só brincadeira de riquinho? Só quem freqüenta a fila do SUS, mora na favela, estuda em escola pública etc. é que tem sofrimentos? Se Luciano Huck não enriqueceu desviando dinheiro público (isso, sim, criminoso e vergonhoso) e não ficou famoso por quebrar ilegalmente o sigilo de um caseiro, vamos ouvir o seu protesto e juntar com todos os outros, independentemente da classe social e econômica, e vamos cobrar dos Legislativos projetos práticos para esta nação.
MARGARETH REZENDE ROQUE (Aparecida, SP)

Na próxima vez que em for assaltado (tomara que isso não aconteça), Luciano Huck deve escrever um artigo elogiando e, principalmente, agradecendo aos pobres ladrões, pois eles são vítimas da burguesia e das elites. Quem sabe assim consiga aplacar o ódio e a inveja de alguns leitores, com certeza simpatizantes do PT. Triste país o nosso, onde ter uma ótima condição financeira virou crime.
FERNANDO ALMEIDA (São Paulo, SP)

Depois da longa explanação de Luciano Huck, confesso que esperava, no último parágrafo, um desfecho sensacional, que explicitasse que todo o arcabouço elitista do qual lançou mão fosse mero jogo de ironias, numa crítica à burguesia brasileira. Que ingenuidade a minha! Tudo não passava do "desabafo" de um homem assaltado, "envergonhado" de ser brasileiro - mas que de brasileiro pouco tem. A análise simplista causa indignação. "O lugar deles é na cadeia", diz ele. "Está na hora de discutir segurança pública", diz ele. Ele deveria continuar: Agora como vou viver sem meu Rolex? Como passearei pelos Jardins sem preocupação? Talvez esteja na hora de mudar-me para Bogotá. Este país não faz parte da minha realidade.
MARCELO PEREIRA INTROÍNI (Campinas, SP)

Luciano Huck, em seu artigo, desabafou contra o assalto que sofreu em São Paulo. Até aí, tudo bem. No entanto, estranhei a seguinte frase: "Pensei no presidente, mas não sei no que ele está pensando". Por que o presidente? O responsável pela polícia paulista é o governador, no caso, José Serra. Ao citar Lula, Huck errou o alvo de seu justo desabafo.
JASSON DE OLIVEIRA ANDRADE ( Mogi-Guaçu, SP)

Como ainda existe preconceito neste país! Para ter um Rolex, Luciano Huck trabalhou muito - e ainda vai trabalhar muito, se Deus quiser. Ele é um dos mais humanos apresentadores da TV, e simplesmente desabafou, como qualquer um. Não tem culpa de ter recebido de Papai do Céu talento e oportunidade. Ainda bem que, naquele momento, com um 38 na cabeça, se lembrou da família, coisa que muita gente colocou de lado nos últimos tempos - e por isso estamos vendo tanta violência. Conte comigo, meu amigo!
PAULO BARBOZA , Rádio Capital (São Paulo, SP)

Fico indignada quando leio depoimentos como o de Luciano Huck. Ele mostra que é mais um pobre moço rico que não conhece nem um pouco a realidade do país em que vive. Parece que só agora, quando foi assaltado, é que tomou conhecimento de um problema antigo que afeta todos os cidadãos. Quantas mulheres já ficaram viúvas e quantas crianças já ficaram órfãs com a violência nas grandes cidades brasileiras? Agora que o apresentador sentiu na pele o problema, quer achar uma solução para a situação, como se ela não existisse antes e como se ele fosse a pessoa mais importante do mundo, a ponto de receber várias homenagens. É realmente horrível ser assaltado, mas Huck não foi o primeiro e infelizmente não será o último. Espero que agora ele resolva se juntar aos "cidadãos comuns" na luta contra a violência. Até porque ele, mais do que ninguém, tem recursos para isso. Antes tarde do que nunca.
CAROLINA SOBRAL MALHADO (São Paulo, SP)

FOLHA DE S. PAULO
sexta-feira, 05 de outubro de 2007
PAINEL DO LEITOR

Parabenizo a Folha por dar a oportunidade a seus leitores de constatar que existem pessoas como o senhor Luciano Huck ("Pensamentos quase póstumos", "Tendências/Debates", 1º/10). Já nos primeiros parágrafos do artigo, deparei com a "humildade" que poderia esperar de uma pessoa que afirma que vive seus dias para melhorar a vida das pessoas e do país. Segundo ele, caso fosse assassinado, deixaria uma multidão triste, o governador envergonhado e o presidente em silêncio. Pena que uma pessoa que tem a oportunidade de divulgar o seu pensamento em nível nacional viva tão fora da realidade a ponto de precisar ter seu Rolex roubado para se dar conta de que a violência escancarada nas ruas não faz parte apenas do roteiro de um filme. Por fim, sugiro ao apresentador que pergunte a um trabalhador que ganha um salário mínimo quanto paga de impostos. Adianto a resposta: uma fortuna!
LUIS FELIPE VELLACICH YUBI (Ourinhos, SP)

Lamentável o comentário de Zeca Baleiro sobre o texto de Luciano Huck - como se Zeca Baleiro não fizesse parte dessa elite. Se a questão da violência chegou à elite por causa de um Rolex, acho ótimo! O que importa é que chegou. E quem sabe assim, quando os poderosos descobrirem que estão na mesma linha de fogo que o pessoal do Capão Redondo, as coisas comecem a mudar. E por falar em Capão Redondo, dou um doce a Zeca Baleiro se ele um dia já passou por lá. Estou farta de gente que come caviar e arrota mortadela.
MARIANA PEDREIRA (São Paulo, SP)

FOLHA DE S. PAULO
sábado, 06 de outubro de 2007
PAINEL DO LEITOR

É legítima a indignação do apresentador, mas me pergunto se conveniente ou coerente. Todos têm direito à propriedade: vivemos num mundo capitalista, e acho este o mais eficiente dos sistemas. O capitalismo é um sistema justo, desde que sejam dadas a todos oportunidades iguais. No entanto, sabemos que isso não passa de uma utopia. E, na conjuntura atual, condeno qualquer forma de ostentação. É degradante ver o crescimento da cultura do luxo frente a tanta miséria na nossa sociedade. Acho que Luciano está sim no seu direito de se revoltar, de querer uma sociedade melhor. Mas é compatível com a nossa realidade pendurar o equivalente a várias casas populares no pulso? É melhor a elite entender que, se nada for feito, o usufruto de suas riquezas estará comprometido. Mesmo forjada, essa consciência é muito importante. É hora de vender os rolex, arregaçar as mangas e tomar atitudes, temo que mandar cartas aos jornais dizendo que "está na hora de mudar" não resolva nada.
NATÁLIA REAL PEREIRA (Belo Horizonte, MG)

Gostaria de saber o que os leitores que escrevem nesta coluna sobre a artigo do sr. Luciano Huck entendem por "elite". Elite é um grupo seleto em qualquer atividade humana - seja intelectual, política, trabalhadora, criminosa etc. Acredito que gostariam de usar o termo "burguesia", porém como é um cliché comunista em desuso e comprovadamente fracassado, usam a expressão "elite". Pelo que consta o senhor Luciano Huck ganha os seus proventos de forma honesta e no mínimo 40% dos seus ganhos são abocanhados pelo governo em forma de impostos para assim manter seu "projeto de poder" através de políticas sociais. Infelizmente, ao contrário de outros países desenvolvidos ou em desenvolvimento, a meritocracia foi jogada no lixo e a cobiça pelo alheio está substituindo a conquista pelo trabalho honesto.
ULISES CLEMENTE VÁZQUEZ (São Bernardo do Campo, SP)

Normal. Esta é a palavra mais usada quando o assunto é violência no Brasil. O caso do assalto ao apresentador Luciano Huck é considerado "normal". A diferença é apenas a mídia, por Luciano ser uma pessoa pública. Quantos brasileiros já perderam a vida por valores menores que um relógio? Milhares. Já se matou por briga, preconceito, comida, passagem de ônibus. A resposta para estes e outros casos é: "normal, isso acontece todo dia". Bem-vindo ao "normal", Luciano.
ADAUTO JÚNIOR (Recife, PE)
FOLHA DE S. PAULO
segunda-feira, 08 de outubro de 2007

Qual é, Mano Huck?

FERNANDO DE BARROS E SILVA


Nunca antes na história deste país um Rolex roubado provocou tanto barulho. O "Painel do Leitor" da Folha se transformou no palco de uma discussão quente como há muito não se via, na qual, a despeito das nuances, prevaleceram duas posições antagônicas: 1. Luciano Huck é a cara da elite brasileira e precisou ser assaltado para cair na real; 2. o apresentador foi agredido duas vezes, pelo ladrão e pelos leitores - e acabou pagando por ser rico e famoso.
Não vamos brincar de mocinho e bandido. Nem com os sinais invertidos. É interessante, sem dúvida, que Ferréz, o escritor do Capão, dramatize o episódio pela ótica do assaltante (na página ao lado). Mas a conclusão de que "todos saíram ganhando" e, afinal, "num mundo indefensável, até que o rolo foi justo para ambas as partes" equivale a fazer a apologia do crime e da barbárie em nome de uma suposta crítica das injustiças sociais. O texto chocará muita gente de boa-fé e joga água no moinho do preconceito contra pobres, pretos e motoboys, à revelia das intenções do autor.
Menos chocante para muitos talvez tenha sido a biografia edificante que Huck fez de si. Primeiro diz que paga todos os seus impostos - "uma fortuna". A seguir, mostra-se preocupado com o Brasil: "Passo o dia pensando em como deixar as pessoas mais felizes e como tentar fazer este país mais bacana. TV diverte e a ONG que presido tem um trabalho sério e eficiente". Por fim, declara uma opção de vida: "Confesso que já andei de carro blindado, mas aboli. Por filosofia". Um cara tão legal... O mundo não é justo.
Mas podia ser pior. Entrevistado pela "Veja", Huck frustra a pauta de sempre da revista. Mostra-se tolerante, defende o ensino público e ainda minimiza o papel do Estado penal no combate à criminalidade.
É divertido ver como as respostas são melhores que as intenções da entrevista.
Mas que traição de classe. Mano Huck resolveu bancar o progressista otário justamente nas páginas amarelas. Chama o ladrão!
FOLHA DE S. PAULO
segunda-feira, 08 de outubro de 2007
TENDÊNCIAS/DEBATES

Pensamentos de um "correria"
FERRÉZ

Ele me olha, cumprimenta rápido e vai pra padaria. Acordou cedo, tratou de acordar o amigo que vai ser seu garupa e foi tomar café. A mãe já está na padaria também, pedindo dinheiro pra alguém pra tomar mais uma dose de cachaça. Ele finge não vê-la, toma seu café de um gole só e sai pra missão, que é como todos chamam fazer um assalto.
Se voltar com algo, seu filho, seus irmãos, sua mãe, sua tia, seu padrasto, todos vão gastar o dinheiro com ele, sem exigir de onde veio, sem nota fiscal, sem gerar impostos.
Quando o filho chora de fome, moral não vai ajudar. A selva de pedra criou suas leis, vidro escuro pra não ver dentro do carro, cada qual com sua vida, cada qual com seus problemas, sem tempo pra sentimentalismo. O menino no farol não consegue pedir dinheiro, o vidro escuro não deixa mostrar nada.
O motoboy tenta se afastar, desconfia, pois ele está com outro na garupa, lembra das 36 prestações que faltam pra quitar a moto, mas tem que arriscar e acelera, só tem 20 minutos pra entregar uma correspondência do outro lado da cidade, se atrasar a entrega, perde o serviço, se morrer no caminho, amanhã tem outro na vaga.
Quando passa pelos dois na moto, percebe que é da sua quebrada, dá um toque no acelerador e sai da reta, sabe que os caras estão pra fazer uma fita.
Enquanto isso, muitos em seus carros ouvem suas músicas, falam em seus celulares e pensam que estão vivos e num país legal.
Ele anda devagar entre os carros, o garupa está atento, se a missão falhar, não terá homenagem póstuma, deixará uma família destroçada, porque a sua já é, e não terá uma multidão triste por sua morte. Será apenas mais um coitado com capacete velho e um 38 enferrujado jogado no chão, atrapalhando o trânsito.
Teve infância, isso teve, tudo bem que sem nada demais, mas sua mãe o levava ao circo todos os anos, só parou depois que seu novo marido a proibiu de sair de casa. Ela começou a beber a mesma bebida que os programas de TV mostram nos seus comerciais, só que, neles, ninguém sofre por beber.
Teve educação, a mesma que todos da sua comunidade tiveram, quase nada que sirva pro século 21. A professora passava um monte de coisa na lousa - mas, pra que estudar se, pela nova lei do governo, todo mundo é aprovado?
Ainda menino, quando assistia às propagandas, entendia que ou você tem ou você não é nada, sabia que era melhor viver pouco como alguém do que morrer velho como ninguém.
Leu em algum lugar que São Paulo está ficando indefensável, mas não sabia o que queriam dizer, defesa de quem? Parece assunto de guerra. Não acreditava em heróis, isso não!
Nunca gostou do super-homem nem de nenhum desses caras americanos, preferia respeitar os malandros mais velhos que moravam no seu bairro, o exemplo é aquele ali e pronto.
Tomava tapa na cara do seu padrasto, tomava tapa na cara dos policiais, mas nunca deu tapa na cara de nenhuma das suas vítimas. Ou matava logo ou saía fora.
Era da seguinte opinião: nunca iria num programa de auditório se humilhar perante milhões de brasileiros, se equilibrando numa tábua pra ganhar o suficiente pra cobrir as dívidas, isso nunca faria, um homem de verdade não pode ser medido por isso.
Ele ganhou logo cedo um kit pobreza, mas sempre pensou que, apesar de morar perto do lixo, não fazia parte dele, não era lixo.
A hora estava se aproximando, tinha um braço ali vacilando. Se perguntava como alguém pode usar no braço algo que dá pra comprar várias casas na sua quebrada. Tantas pessoas que conheceu que trabalharam a vida inteira sendo babá de meninos mimados, fazendo a comida deles, cuidando da segurança e limpeza deles e, no final, ficaram velhas, morreram e nunca puderam fazer o mesmo por seus filhos!
Estava decidido, iria vender o relógio e ficaria de boa talvez por alguns meses. O cara pra quem venderia poderia usar o relógio e se sentir como o apresentador feliz que sempre está cercado de mulheres seminuas em seu programa.
Se o assalto não desse certo, talvez cadeira de rodas, prisão ou caixão, não teria como recorrer ao seguro nem teria segunda chance. O correria decidiu agir. Passou, parou, intimou, levou.
No final das contas, todos saíram ganhando, o assaltado ficou com o que tinha de mais valioso, que é sua vida, e o correria ficou com o relógio.
Não vejo motivo pra reclamação, afinal, num mundo indefensável, até que o rolo foi justo pra ambas as partes.

REGINALDO FERREIRA DA SILVA , 31, o Ferréz, escritor e rapper, é autor de "Capão Pecado", romance sobre o cotidiano violento do bairro do Capão Redondo, na periferia de São Paulo, onde ele vive, e de "Ninguém é Inocente em São Paulo", entre outras obras.
FOLHA DE S. PAULO
segunda-feira, 08 de outubro de 2007
NELSON ASCHER

Entre Hobsbawm e Huck
A nenhum ideário se aplica tão bem a analogia com o tempo verbal chamado futuro do pretérito como ao comunismo, que, sempre dependendo do porvir, pagava os desastres presentes com os cheques pré-datados (e frios) da utopia. Daí que não exista situação mais embaraçosa para um comunista do que a longevidade. Este é o caso do historiador comunista (desculpem o oxímoro) Eric Hobsbawm, cuja entrevista a Sylvia Colombo foi publicada recentemente na Folha.
Filiado ao Partido Comunista britânico desde a juventude, o "historiador" já colocara sua pena servil ao serviço deste em 1940, escrevendo com Raymond Williams um infame panfleto pró-imperialista defendendo a invasão da Finlândia pela URSS. Ele justificava sua escolha como a única possível diante da ameaça nazista. Só que, se era tão antinazista, por que continuou a apoiar os soviéticos entre 39-41, quando estes eram os mais importantes aliados da Alemanha? Por que não abandonou o partido para apoiar o país que estava combatendo o Terceiro Reich, isto é, o seu?
Hobsbawm gosta de repetir que foram antes os intelectuais do bloco soviético, não o povo, que se desencantaram com o comunismo. Se o diz, contudo, é porque, como bom intelectual, passou a vida falando de preferência com outros intelectuais. Caso contrário, saberia que, desde seu estabelecimento, não houve no mundo sistema mais desprezado e odiado por suas vítimas, as pessoas comuns. Mesmo o nazismo foi mais popular, pelo menos entre os alemães e enquanto a guerra lhes parecia favorável.
É fácil entender as razões pelas quais nosso ideólogo abandonou os ares de historiador e preferiu dedicar-se à futurologia, prevendo a queda iminente de um tal de império americano. Está certo ele: nada no passado saiu como imaginara (ou desejara) e, assim, aos 90 anos de idade, é mais seguro discorrer sobre o que não irá testemunhar. Seu problema, contudo, é o seguinte: se não conseguiu antever nem aceitar o desmoronamento, em menos de três gerações, de um império territorial, o soviético, e se tampouco é capaz de compreender que o verdadeiro imperialismo de nossos tempos é o islâmico, por que alguém perderia tempo com ele em seu papel de Cassandra?
Seja como for, um mérito seu deve ser reconhecido. Como velho marxista, ele não manifesta simpatia pelo desvario teocrático-político. Já seus discípulos têm menos escrúpulos e, especialmente no Reino Unido, acreditam que em sua aliança com as lideranças e massas islamizadas está a chave para a revolução antiimperialista.
Se o comunismo foi um dia a aspiração prometéica de transformar o mundo sobre os ossos de cadáveres, hoje em dia ele não passa de um reacionarismo desorientado e rancoroso, cioso de cada detrito de sua mitologia kitsch (como Che Guevara) e sempre acreditando que "quanto pior, melhor".
Isso é o que transparece em reações a um artigo que, a respeito do assalto que sofrera nos Jardins, o apresentador de TV Luciano Huck publicou, na semana passada, na seção "Tendências/Debates".
O tom das respostas negativas era o de que um brasileiro que não seja "excluído" não tem direito nem aos benefícios da cidadania, nem à proteção das leis nem sequer à solidariedade. Está proibido até de reclamar. Segundo aquelas, caso alguém pertença à "elite", mesmo que pague impostos e não cometa crimes, tem é que morrer, salvo, talvez, se ingressar no PT. Também quem mandou Huck violar o tabu e afirmar o óbvio, que lugar de bandido é na cadeia? Não cai bem dizer que é graças ao aumento da população carcerária que, nos últimos anos, a criminalidade caiu dois terços em São Paulo.
Há, todavia, um paradoxo que torna ainda mais estranho o contexto dessa história. O que distingue os esquerdistas das pessoas normais e racionais é o fato de que aqueles são avessos à iniciativa privada, achando que tudo deve ser confiado ao grande benfeitor, o Estado. Tudo, sim, com uma exceção: a violência. Quando se trata desta, o Estado (se é de direito e democrático) nunca pode usá-la legitimamente, mas, se forem indivíduos que recorrem a ela, então é permitida e até desejável, sobretudo no caso de bandidos e terroristas. A violência boa, para essa gente, que provavelmente aprova Hobsbawm e desaprova Huck, é a do free-lancer, exceto quando o Estado é revolucionário e perpetra uma violência idem. Execução em massa de opositores políticos, tudo bem; prisão para bandidos, não.
O ESTADO DE S.PAULO
terça-feira, 9 de outubro de 2007
DORA KRAMER

Huck por “Hulks”
É preocupante a reação de ira provocada pelo artigo (ótimo, na forma e no conteúdo) do apresentador Luciano Huck, publicado semana passada na Folha de S. Paulo e ampliado na entrevista “amarela” da Veja desta semana.
Quando as pessoas se sentem à vontade para reprimir o direito de um cidadão se manifestar contra a violência porque é “rico” e “branco” e certas rodas celebram como cultura de periferia a tese de que roubar sem matar é aceitável como defesa natural da carência de muitos ante a abundância de poucos, algo de muito podre viceja no País.
Pode não ser perceptível a olho nu, mas esse tipo de mentalidade faz parte da lógica segundo a qual a política, quando exercida supostamente em nome dos mais pobres, dispensa a obediência ao princípio universal da ética, da convivência civilizada e da igualdade entre os cidadãos.
Resulta do patrocínio ao ódio de classes e à discriminação racial.
Por esse raciocínio, menosprezar a “elite branca” virou “cult” e engajado.
Começa assim. Depois alguém passa a defender o desprezo à “escória negra” e não se poderá dizer mais nada, porque o preconceito já será o padrão.
FOLHA DE S. PAULO
quarta-feira, 10 de outubro de 2007
ELIO GASPARI

O socialismo precisa de um Rolex.
Pobre Luciano Huck. Foi assaltado por dois sujeitos que, de revólver na mão, tomaram-lhe o Rolex. Reclamou num artigo publicado na Folha do dia 1º e teria feito melhor negócio se saísse por aí, cumprindo "missões" em cima de motoqueiros. Foi acusado de ganhar muito e, portanto, ser fonte da violência. Mais: quem manda "pendurar o equivalente a várias casas populares no pulso"? Disse que "isso não está certo" e perguntaram-lhe o que devem dizer as pessoas que vivem de salário mínimo. Fechando o ciclo, num artigo marginal-chique, o rapper Ferréz respondeu com o olhar dos assaltantes e os óculos de Madre Teresa de Calcutá: "Não vejo motivo para reclamação, afinal, num mundo indefensável, até que o rolo foi justo para ambas as partes".
Está mais ou menos entendido que o partido democrata perdeu a confiança dos americanos nos anos 80 porque deixou-se confundir com os defensores de bandidos. Cada um pode achar o que quiser (desde que não tome o relógio alheio), mas nesse caminho a discussão da segurança pública brasileira caminha para a formação de duas tropas, ambas julgando-se elite do seja lá o que for. Grita-se, para que tudo continue como está. O filme ensina: o traficante foucaultiano da PUC não foi para a cadeia e o PM larápio e covarde voltou para a tropa.
Por ser um profissional bem-sucedido e ter ganho um Rolex de presente da mulher (a apresentadora Angélica, igualmente bem-sucedida), Huck foi transformado num obelisco da desigualdade social brasileira.
Infelizmente, assaltos não melhoram o índice de Gini. No caso do Rolex do apresentador, especular o destino do dinheiro de sua venda é um exercício carnavalesco. Pode-se sonhar que tenha ido para uma família carente, mas é mais provável que tenha servido para fechar um trato de droga. Que tal as duas coisas, meio a meio? Uma coisa é certa, o Rolex voltará ao pulso de alguém disposto a pagar por ele.

19 outubro 2007

BLOG Reinaldo Azevedo
segunda-feira, 08 de outubro de 2007
Ascher e Ferréz divergem? Não!
Ascher é civilização; Ferréz é barbárie.
A mesma Folha que traz o artigo do empresário Ferréz (que considera justo que um bandido leve um Rolex e deixe, em troca, viva a vítima) publica um artigo do sempre excelente Nelson Ascher, intitulado “Entre Hobsbawm e Huck”. No texto, aborda a falência teórica da esquerda até chegar ao flerte com o crime comum.
Pois bem. O que faz a Folha? Publica, na primeira página, chamada para os dois artigos, o de Ferréz no alto, o de Ascher logo abaixo. Acima dos dois, um sobretítulo: “Polêmica”. O jornal esta nos convidando a nos confrontar com o que seriam visões distintas, quem sabe opostas, de um mesmo problema. Trata-se de um erro brutal.
Falei em “erro”? Falei. De que tipo? Erro de mercado? Não sei nem tenho como avaliar. Pode ser que os leitores do jornal gostem dessa abordagem. O erro que aponto é ético, é moral. Ao classificar de “polêmica” os dois textos, as posições se igualam; ambas seriam válidas. Não são. Ascher defende a lei e a ordem democráticas, aquelas que garantem à Folha, a mim e a você, leitor, o exercício de nossa liberdade. Já Ferréz acredita que há razões que justifiquem alguém enfiar um trabuco na nossa cara. Se dermos ao bandido o que ele quer, ótimo. Ficamos vivos, numa troca justa. Se não dermos, preservamos o nosso bem, mas o bandido leva a nossa vida embora. E isso também será justo.
É assim? Por que a Folha não publica, então, artigos em defesa da luta armada, da pedofilia e do terrorismo? Qual é a diferença? Este questionamento, como vêem, é de um leitor, eu, e é dirigido claramente ao jornal. Todas as opiniões merecem, em nome da democracia, disputar espaço na civilização? Eu acho que não. "Quem é você para questionar o jornal?” A pergunta é justa. Ninguém. Sou alguém que tem um blog e que decide, de vez em quando, questionar até o Altíssimo, como Padre Vieira fazia. O meu ridículo me pertence. E não enfia o trabuco na cara de ninguém.
Não direi como Fernando Barros sobre a VEJA: “Ah, vocês sabem, é a pauta de sempre da Folha”. Porque o jornal é maior do que seus equívocos. Se Fernando Barros tem reservas à linha editorial da VEJA, ele pode e deve expô-las. Mas ele não está interessado nisso. Resolveu aderir ao clima de pega-pra-capar que a extrema esquerda tenta criar contra a revista; resolveu se juntar àquela meia-dúzia de celerados que queimaram exemplares da publicação num protesto. Mas essa é a crítica a Fernando Barros. O objeto deste post é outro.
Poder-se-ia dizer: “É importante que os leitores saibam que existe gente que pensa como Ferréz”. Mas eles já sabem, não é? Experimentam isso no dia-a-dia das grandes cidades. Como sabemos que há gente que só consegue fazer sexo molestando crianças. Há até uma estética da pedofilia. Há grupos que tentam transformá-la numa ética. O mesmo vale para o terrorismo. Então é chegada a hora de dar voz a toda essa gente?
Não! Não há polêmica nenhuma entre Ascher e Ferréz. Um defende a ordem democrática. O outro defende a morte como instrumento de justiça social.
Rebeldes primitivos, pensadores idem.
Ao longo da história, a visão idealizada sobre o pobre — uma das muitas heresias do cristianismo — foi substituída pela glorificação da marginalidade, e esta é uma das heresias do marxismo. Marx, Lênin, Trotsky, Gramsci... Não há um só miserável pensador (e militante pra valer) da esquerda que de fato tenha feito história (ainda que para o mal) que endosse ou endossasse as bobagens ditas por Ferréz. Não há ali teoria revolucionária. Há exaltação do banditismo, e, no que concerne à política, quando muito, exalta-se o pobrismo.
Hobsbawm, citado por Nelson Ascher, tem um livro interessante chamado Rebeldes Primitivos. Eu escrevi “interessante”, não escrevi “bom”. A rebeldia de movimentos de protesto contra o capital, no século 19, guardaria uma intimidade e um estranhamento com os movimentos revolucionários: as motivações seriam idênticas, mas seu alcance, distinto. Porque faltaria àquelas ações a direção política e a devida compreensão do processo histórico, e isso só foi alcançado pelos movimentos socialistas. Hobsbawm é o que restou, e é pouco, da “esquerda pensadora” e, de fato, “marxista”.
Pois bem. Os socialistas inventaram para si mesmos uma história evolutiva, a partir de pistas fornecidas pelo próprio Marx: o socialismo teria caminhado da fase utópica para a científica, quando, então, a revolução passa a ser, para eles, o resultado de uma equação. Notem bem: equação a ser ensinada à militância; uma equação extraída da própria natureza do processo social, já que o horizonte socialista, para os marxistas autênticos, é um horizonte fatal, não uma escolha. Uma ou outra coisa podem retardar o advento, mas não impedir. Nada mais é do que uma versão sem Deus do Juízo Final. Todas as religiões têm estruturas semelhantes, como sabem.
Fim da URSS, queda do Muro de Berlim, triunfo da globalização, mercados sem fronteiras, “comunismo” chinês de mercado... A esquerda está desmoralizada, perdeu suas bandeiras, não tem para onde correr. E o que ela faz? Renuncia, então, àquilo que pretendia ser o aporte científico de sua formulação — "a classe operária (que também acabou) é revolucionária" — e se volta para a glorificação de uma versão contemporânea dos rebeldes primitivos: Mano Brown, Ferréz, sei lá quem de calça caindo com a cueca à mostra.
Ocorre que a vitória do capitalismo é tão avassaladora, que também essas vozes da contestação só existem como uma faceta da cultura de mercado. Ou será que Mano Brown não manipula, com esperteza, a sua fama de mau? Ou será que Ferréz não obtém vantagens de sua condição de “pensador” do Capão Redondo? Não interessa. Eles passam a ser os, vá lá, “ícones” daqueles que assumem o papel de críticos do capitalismo. São a encarnação do “bom selvagem” dos sonhos de justiça de Maria Rita Kehl e, por que não?, de Fernando de Barros e Silva.
Não disputarei com ambos um braço-de-ferro para saber quem conhece mais de perto o pobre e a pobreza. Tenho horror à demagogia. Mas também à solidariedade putativa com a “causa dos oprimidos”. Até porque, convenham, o que importa não é a origem social do crítico, certo?, mas os seus “compromissos”. O sujeito pode ter uma origem burguesa e ser um exímio revolucionário, a exemplo de Che Guevara — exímio mesmo, até na celeridade com que prendia, julgava e matava. E pode, claro, ser um trânsfuga como este escrevinhador: da favela para a suspeição de pena de aluguel de plutocratas da mídia. No fim das contas, diria um realista, o que importa é o que os trânsfugas de ambos os lados fazem de prático para ver realizadas suas utopias, certo? O que importa é o que Barros e Kehl fazem de efetivo para libertar os oprimidos e o que eu faço para mantê-los subjugados, agora que não sou mais um deles e decidi lhes dar um pé no traseiro.
O balanço seria vexaminoso pra mim e pra eles. Nem eles libertam ninguém nem eu oprimo ninguém. Atuamos todos, quando muito, no fórum da opinião pública, com questões que dizem respeito a valores. Eu não consigo condescender com o crime e com a violência; também não simpatizo com as teorias que vêem na origem social do indivíduo a gênese de suas escolhas morais. Trata-se, é verdade, de uma constatação de duas faces:

1) conheço os pobres de perto — não de manual, a exemplo do bom burguês esquerdista —, e sei que podem ser bons e podem ser maus, como quaisquer indivíduos. Mas não superestimo a experiência pessoal;
2) também o que li, e não apenas o que vivi, me indica que o cumprimento da lei, numa ordem democrática, é o melhor caminho para a solução de conflitos. Não é uma escolha tranqüila. A suposta legitimidade da violência está sempre assombrando a legalidade.

E a linha final do item 2 vai me levando para a conclusão deste post. A esquerda tinha uma utopia, a que não faltou, como todos sabemos, a justificação do crime, se necessário, em nome do porvir. Ascher toca numa questão central: Hobsbawm, o marxista, o revolucionário, o defensor do poder operário, continuou fiel à URSS, quando ela mantinha um pacto com a Alemanha nazista, em vez de se alinhar com o Inglaterra. Sob certas circunstâncias, para um comunista, o nazismo pode se constituir numa boa aliança estratégica...
Mas aquele ainda era o esquerdismo que se queria “científico” — mesmo que a racionalidade a que apelasse, sob o pretexto de ser dialética, nada mais fosse do que a justificativa do mal. Os modernos esquerdistas, sem mais aparato racional que justifique as suas utopias, voltaram ao estágio anterior ao do “socialismo científico”: são, em tudo e por tudo, pré-modernos; passaram a exaltar os “rebeldes primitivos” (de resto, falsos porque beneficiários do capitalismo, a exemplo de qualquer um que eles chamam “burgueses”); passaram a aderir a formulações que, a rigor, seriam pré-políticas. E erram até nisso, já que o PT, obviamente, instrumentaliza essa “rebeldia”.
A periferia de São Paulo ou os morros do Rio seriam uma espécie de manguezal ou de ninhal de uma nova verdade — não, melhor ainda: da mesma e eterna verdade: a verdade do oprimido. É evidente que nada há mais de marxismo aqui; estamos de volta às mesmas formulações dos socialistas utópicos, tão severamente combatidos por Marx. E notem que a prática não dispensa nem o velho e surrado paternalismo. Pressentindo que Ferréz tinha passado da conta ao sugerir que a troca de um relógio pela vida é justa, Fernando Barros escreve: “Mas a conclusão de que ‘todos saíram ganhando’ e, afinal, ‘num mundo indefensável, até que o rolo foi justo para ambas as partes’ equivale a fazer a apologia do crime e da barbárie em nome de uma suposta crítica das injustiças sociais. O texto chocará muita gente de boa-fé e joga água no moinho do preconceito contra pobres, pretos e motoboys, à revelia das intenções do autor”. Como a gente vê, para o articulista, o pior do artigo de Ferréz não está no que ele diz, mas no eventual mau uso que só possa fazer daquilo — como se pudesse haver um bom uso. É como se dissesse: "Não dê corda para os inimigos, Ferréz; seja mais esperto; seja mais estratégico".
Faz sentido. Quem cultiva rebeldes primitivos precisa mantê-los sob alguma forma de tutela, não é?
FOLHA DE S. PAULO
segunda-feira, 15 de outubro de 2007
TENDÊNCIAS/DEBATES

A pluralidade e a revolução dos idiotas
REINALDO AZEVEDO

Há uma revolução em curso: a dos idiotas. Eles começam agredindo a lógica e terminam justificando o assassinato. Voltarei a esse ponto.
Na semana passada, o escritor e rapper Ferréz escreveu um artigo neste espaço em que tratou do assalto de que Luciano Huck foi vítima. Lê-se: "No final das contas, todos saíram ganhando, o assaltado ficou com o que tinha de mais valioso, que é sua vida, e o correria ficou com o relógio. Não vejo motivo pra reclamação, afinal, num mundo indefensável, até que o rolo foi justo pra ambas as partes". Ele não pode ser mal interpretado porque não pode ser bem interpretado: fez a apologia do crime, o que é crime. Será este jornal tão pluralista que admite alguém como Ferréz? Será este jornal tão pluralista que admite alguém como eu? Lustramos ambos o ambiente de tolerância desta Folha? A resposta é "não".
O artigo do tal é irrespondível. Vou eu lhe dizer que o crime não compensa? Ele tem motivos para acreditar que sim. Lênin mandaria que lhe passassem fogo - não sem antes lhe expropriar o relógio. Apenas sugiro ao jornal que corrija seu pé biográfico: ele é um empresário; o bairro do Capão Redondo é seu produto, e a voz dos marginalizados, o fetiche de sua mercadoria. Ir além na contestação de seu libelo criminoso seria reconhecê-lo como voz aceitável na pluralidade do jornal. Eu não reconheço.
Na democracia, o direito à divergência não alcança as regras do jogo. Um democrata não deve, em nome de seus princípios, conceder a seus inimigos licenças que estes, em nome dos deles, a ele não concederiam se chegassem ao poder. Ao publicar aquele artigo, a Folha aceita que potencialmente se solapem as bases de sua própria legitimidade. Errou feio.
O poeta Bruno Tolentino é autor de um verso e tanto: "A arte não tem escrúpulos, tem apenas medida". O mesmo vale para a ação política.
Idealmente, há quem ache que o mundo seria melhor sem propriedade privada - eu acredito que, sem ela, estaríamos de tacape na mão, puxando as moças pelos cabelos.
Posso acalentar quantos sonhos quiser, sem escrúpulos. Mas o regime democrático tem medidas. Uma delas é o respeito às leis - inclusive às leis que regulam a mudança das leis. Se admitimos a voz do assalto, por que não a da pedofilia, a do terrorismo, a da luta armada, a do racismo? Aceito boas respostas.
O empresário Ferréz, ao lado de Mano Brown, é um bibelô mimado pelas esquerdas e pelo pensamento politicamente correto, para quem o crime é uma precognição política a caminho de uma revelação.
Tal suposição, somada à patrulha que tentou transformar Luciano Huck no verdadeiro culpado pelo assalto, contribuiu para esconder um fato relevante. A cidade de São Paulo teve 49,3 homicídios por 100 mil habitantes em 2001. Em 2006, 18,39 (uma redução de 62,69%). Em 2001, havia presas no Estado 67.649 pessoas; em 2006, 125.783 (crescimento de 85,93%). Não é espantoso? Quanto mais bandidos presos, menos crimes. Quanto mais eficiente é a polícia, menos mortos.
Eis que, no dia 11, abro esta mesma página e dou de cara com um artigo de Sérgio Salomão Shecaira. Escreve: "(...) O Estado de São Paulo concentra quase a metade dos cerca de 419 mil presos brasileiros (...). Enquanto, no Brasil, existem 227,63 presos por 100 mil habitantes, em São Paulo essa relação salta para 341,98 por 100 mil habitantes". Ele está descontente.
Quer prender menos: "Enquanto, no Estado de São Paulo, em 2005, houve 18,9 homicídios por 100 mil habitantes, no Rio de Janeiro a cifra foi de 40,5, e, em Pernambuco, de 48. No entanto, nesses dois últimos Estados, o número relativo de presos é bem menor que o paulista".
Shecaira é mestre e doutor em direito penal e professor associado da Faculdade de Direito da USP. Mas ainda não descobriu a lógica, coitado!
Ora, por que será que São Paulo tem, por 100 mil, menos da metade dos homicídios que tem o Rio e quase um terço do que tem Pernambuco? Porque há mais bandidos na cadeia!
Mas ele quer menos. Logo... Em vez de Ferréz se alfabetizar politicamente no contato com Shecaira, é Shecaira quem se analfabetiza no contato com Ferréz.
A tragédia não é recente. Aconteceu com a universidade: em vez de ela fornecer teoria aos sindicatos, foram os sindicatos que lhe forneceram táticas de greve. Em vez de Marilena Chaui ensinar ao companheiro as virtudes do pensamento, foi o companheiro que explicou a Marilena por que pensar é uma bobagem.
A minha pluralidade não alcança tolerar idiotas que querem destruir o sistema de valores que garantem a minha existência. E, curiosamente, até a deles.
REINALDO AZEVEDO, 46, jornalista, é articulista da revista "Veja"