29 junho 2012

O CUSTO LULA
Carlos Alberto Sardenberg


Há menos de três anos, em 17 de setembro de 2009, o então presidente Lula apresentou-se triunfante em uma entrevista ao jornal “Valor Econômico”.

Entre outras coisas, contou, sem meias palavras, que a Petrobras não queria construir refinarias e ainda apresentara um plano pífio de investimentos em 2008.

“Convoquei o conselho” da empresa, contou Lula. Resultado: não uma, mas quatro refinarias no plano de investimentos, além de previsões fantásticas para a produção de óleo.

Em 25 de junho último, a Petrobras informa oficialmente aos investidores que, das quatro, apenas uma refinaria, Abreu e Lima, de Pernambuco, continua no plano com data para terminar. E, ainda assim, com atraso, aumento de custo e sem o dinheiro e óleo da PDVSA de Chávez.

Todas as metas de produção foram reduzidas. As anteriores eras “irrealistas”, disse a presidente da companhia, Graça Foster, acrescentando que faria uma revisão de processos e métodos. Entre outros equívocos, revelou que equipamentos eram comprados antes de os projetos estarem prontos e aprovados.

Nada se disse ainda sobre os custos disso tudo para a Petrobras. Graça Foster informou que a refinaria de Pernambuco começará a funcionar em novembro de 2014, com 14 meses de atraso em relação à meta anterior, e custará US$ 17 bilhões, três bi a mais. Na verdade, as metas agora revistas já haviam sido alteradas. O equívoco é muito maior.

Quando anunciada por Lula, a refinaria custaria US$ 4 bilhões e ficaria pronta antes de 2010. Como uma empresa como a Petrobras pode cometer um erro de planejamento desse tamanho? A resposta é simples: a estatal não tinha projeto algum para isso, Lula decidiu, mandou fazer e a diretoria da estatal improvisou umas plantas. Anunciaram e os presidentes fizeram várias inaugurações.

O nome disso é populismo. E custo Lula. Sim, porque o resultado é um prejuízo para os acionistas da Petrobras, do governo e do setor privado, de responsabilidade do ex-presidente e da diretoria que topou a montagem.


Tem mais na conta. Na mesma entrevista, Lula disse que mandou o Banco do Brasil comprar o Votorantim, porque este tinha uma boa carteira de financiamento de carros usados e era preciso incentivar esse setor.

O BB comprou, salvou o Votorantim e engoliu prejuízo de mais de bilhão de reais, pois a inadimplência ultrapassou todos os padrões. Ou seja, um péssimo negócio, conforme muita gente alertava. Mas como o próprio Lula explicou: “Quando fui comprar 50% do Votorantim, tive que me lixar para a especulação.”

Quem escapou de prejuízo maior foi a Vale. Na mesma entrevista, Lula confirmou que estava, digamos, convencendo a Vale a investir em siderúrgicas e fábricas de latas de alumínio.

Quando os jornalistas comentam que a empresa talvez não topasse esses investimentos por causa do custo, Lula argumentou que a empresa privada tem seu primeiro compromisso com o nacionalismo.

A Vale topou muita coisa vinda de Lula, inclusive a troca do presidente da companhia, mas se tivesse feito as siderúrgicas estaria quebrada ou perto disso. Idem para o alumínio, cuja produção exige muita energia elétrica, que continua a mais cara do mundo.

Ou seja, não era momento, nem havia condições de fazer refinarias e siderúrgicas. Os técnicos estavam certos. Lula estava errado. As empresas privadas foram se virando, mas as estatais se curvaram.

Ressalva: o BNDES, apesar das pressões de Brasília, não emprestou dinheiro para a PDVSA colocar na refinaria de Pernambuco. Ponto para seu corpo técnico.

Quantos outros projetos e metas do governo Lula são equivocados? As obras de transposição do Rio São Francisco estão igualmente atrasadas e muito mais caras. O projeto do trem-bala começou custando R$ 10 bilhões e já passa dos 35 bi.

Assim como se fez a revisão dos planos da Petrobras, é urgente uma análise de todas as demais grandes obras. Mas há um outro ponto, político. A presidente Dilma estava no governo Lula, em posições de mando na área da Petrobras. Graça Foster era diretora da estatal. Não é possível imaginar que Graça Foster tenha feito essa incrível autocrítica sem autorização de Dilma.

Ora, será que as duas só tomaram consciência dos problemas agora? Ou sabiam perfeitamente dos erros então cometidos, mas tiveram que calar diante da força e do autoritarismo de Lula? De todo modo, o custo Lula está aparecendo mais cedo do que se imaginava. Inclusive na política.

06 junho 2012


OS NEGROS DEVERIAM TOLERAR ISTO?

WALTER WILLIAMS - professor de Economia na George Mason University

A cada ano, cerca de 7 mil negros são assassinados. 94% das vezes, o assassino é um outro negro. De acordo com a Agência de Estatísticas do Ministério da Justiça dos EUA, entre 1976 e 2001 houve 279.384 negros vítimas de homicídio.

Os 94% significam que 262.627 foram assassinados por outros negros. Embora os negros sejam 13% da população nacional, eles são responsáveis por mais de 50% das vítimas de homicídio. Nacionalmente, a taxa de homicídios entre os negros é seis vezes maior do que a dos brancos e, em algumas cidades, é 22 vezes maior. Além de serem as maiores vítimas de homicídios do país, os negros são também as maiores vítimas de crimes violentos contra a pessoa, como agressão e roubo.

A magnitude desse trágico caos pode ser vista sob outro prisma. De acordo com um estudo do Instituto Tuskegee, entre 1882 e 1968, 3.446 negros foram linchados nas mãos de brancos. O número de negros mortos durante a Guerra da Coréia (3.075), Guerra do Vietnã (7.243) e todas as guerras desde 1980 (8.197) chegam a 18.515, um número que empalidece em comparação com as perdas internas de vidas de negros. É trágico poder dizer que jovens negros têm chances maiores de chegar à vida adulta nos campos de batalhas do Iraque e Afeganistão do que nas ruas da Filadélfia, Chicago, Detroit, Oakland, Newark e outras cidades.

Um assunto muito mais sério é como podemos interpretar o silêncio ensurdecedor a respeito dos assassinatos do dia-a-dia em comunidades negras comparados ao clamor nacional sobre a morte de Trayvon Martin. Tal resposta de políticos, organizações de direitos civis e a mídia convencional poderia ser facilmente interpretada como "negros matando outros negros é de pouca importância, mas é inaceitável que um branco mate um negro."

Há uns poucos líderes dos direitos civis com uma visão diferente. Quando o presidente Barack Obama comentou sobre o caso Trayvon Martin, T. Willard Fair, presidente da Associação Urbana da Região Metropolitana de Miami, disse ao The Daily Caller que "a revolta deveria ser com nós nos matando, com o crime do negro contra o negro". Ele fez uma pergunta retórica: "Você não pensaria que 41 pessoas baleadas (em Chicago) entre as manhãs de sexta e de segunda-feira seria muito mais digno de nota e mereceria muito mais atenção da mídia?" Ex-líder da NAACP (Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor), o pastor C.L. Bryant disse que as mobilizações organizadas por Al Sharpton e Jesse Jackson sugerem uma epidemia de "homens brancos matando jovens negros," e acrescenta: "A epidemia é, na verdade, dos crimes de negros contra negros. O maior perigo para as vidas dos jovens negros são os jovens negros."

Não há silêncio apenas a respeito dos crimes de negros contra negros. Há silêncio e encobrimento sobre os ataques racistas de negros contra brancos - por exemplo, os recentes ataques contra dois repórteres do jornal Virginian-Pilot, pegos e espancados por uma multidão de jovens negros. A história não foi sequer noticiada pelo próprio jornal. Em março, uma multidão de negros agrediu, deixou inconsciente e sem roupas além de roubar um turista branco no centro de Baltimore. Grupos de negros têm perambulado pelas ruas de Denver, Chicago, Filadélfia, Nova Yorque, Cleveland, Washington, Los Angeles e outras cidades, atacando brancos sem motivo e fugindo com seus pertences.

Ataques racistas têm ocorrido não apenas contra brancos, mas também asiáticos. Tais ataques incluem o espancamento até a morte de um chinês de 86 anos, a derrubada de uma mulher de 57 anos de uma plataforma de trem, e bater em um chinês de 59 anos no chão - o que o matou. Por anos, estudantes asiáticos em Nova Yorque e na Filadélfia têm sido espancados por seus colegas negros e chamados por termos racistas como "Ei, chinês!" e "E aí, dragon ball!" Mas essa forma de bullying, ao contrário do bullying contra homossexuais, segue anônima e impune.

A demagogia racial, do presidente para baixo, não serve aos melhores interesses de nossa nação, além de ser perigosa. Assim como meu colega Thomas Sowell recentemente colocou: "Se há uma coisa pior do que uma guerra racial unilateral, é uma guerra racial bilateral, especialmente quando uma das raças é varias vezes mais numerosa do que a outra.

ESTE É MEU CORPO
João Pereira Coutinho - Folha de S. Paulo - 5/6/2012


Caro leitor: você está contente com o seu corpo? Pense bem. Olhe-se bem.

Os ingleses não estão. Informa a BBC Brasil que um grupo de deputados auscultou a população nativa a respeito.

As conclusões do estudo, intitulado "Reflections on Body Image" ("reflexões sobre a imagem do corpo"), são dramáticas: ninguém gosta da respectiva carcaça.

Nas escolas, o cenário é particularmente aterrador: um em cada cinco meninos de 10 anos despreza a própria figura; uma em cada três meninas também.

A situação é tão extrema que os deputados sugerem aulas de imagem e expressão corporal para combater a insatisfação com o corpo. É preciso mais "autoestima", dizem os especialistas. A saúde psíquica de uma nação depende disso.

Boa sorte, rapazes. Mas posso explicar por que motivo o projeto educacional está destinado ao fracasso? Deixo ficar a teoria para mais tarde. Prefiro a prática por agora.

Moro em frente a uma academia de ginástica. E todos os dias, manhã cedo, contemplo através do vidro exércitos de infelizes que marcham lá para dentro em busca das formas perfeitas.

O cortejo é deprimente, concedo: a angústia plasmada no rosto de cada um dos peregrinos faria as delícias de Hieronymus Bosch. Mas o essencial da experiência está na propaganda da academia -duas frases escritas em inglês e com cores berrantes, logo na entrada: "One life. Live it well."

Nem mais. Durante séculos, a civilização ocidental -corrijo: a civilização judaico-cristã que forjou o Ocidente- tinha uma singular visão do corpo que se alterou com a modernidade.

Simplificando, o corpo tinha a sua importância como guardião da alma divina. Mas só a alma era eterna; só a alma viajava para o outro lado, o que concedia ao corpo um estatuto perecível e secundário.

Quando existe um horizonte de eternidade pela frente, e quando a eternidade se assume como prolongamento da existência terrena e compensação de suas misérias, é normal que o olhar humano não atribua ao corpo e às suas imperfeições o lugar histérico de hoje.

Esse horizonte de eternidade perdeu-se. Para usar as palavras de Thomas Hardy em poema célebre sobre o "funeral de Deus", a divindade podia ser uma projeção que os homens modernos não conseguiram mais manter viva.

Mas existem consequências desse enterro. Se não existe nenhuma continuidade pós-terrena, se tudo que resta é esta passagem breve e incompleta que termina entre quatro tábuas, o olhar humano recentra-se sobre a matéria.

Pior: coloca a matéria no altar das antigas divindades e troca as orações e as penitências do passado pelo calvário tangível da malhação matinal.

Só existe uma vida. Só existe uma oportunidade para vivê-la bem. As frases promocionais da academia podem ser lidas como grito festivo e obviamente narcísico.

Mas também são a expressão de uma angústia e terror bem profundos: a angústia e o terror de quem sabe que não terá uma segunda oportunidade.

Todas as fichas do jogo estão cá embaixo, não lá em cima. Aliás, não existe mais "lá em cima".

Os deputados ingleses, sem originalidade, acreditam que a insatisfação com o corpo tem origem nas imagens de perfeição irreal que a moda ou o cinema cultivam. O clichê de um clichê.

Erro crasso. Essas imagens de perfeição irreal são apenas a consequência, e não a causa, de uma cultura que concedeu ao corpo uma fatídica importância.

E "fatídica" pela razão evidente de que condena os homens a adorar um deus falível por definição. Um deus caprichoso e inconstante, sujeito às inclemências da velhice, da doença e da morte. Se existem causas perdidas, o corpo é a primeira delas. Alimentar causas perdidas é um sintoma de demência.

É por isso que a nossa obsessão com a carcaça não se corrige com as tais aulas de imagem e expressão corporal. Não se corrige com mais "autoestima".

Ironicamente, corrige-se com menos "autoestima". Somos pó e ao pó retornaremos. Aulas de teologia fariam mais pelas crianças inglesas do que renovadas sessões com o corpo no papel principal.

04 junho 2012


DESATAR O NÓ
Denis Lerrer Rosenfield - professor de filosofia da UFRGS
Estado de São Paulo - 4 de junho de 2012


O que têm em comum o mensalão e a CPI do Cachoeira, implicando a construtora Delta e governadores supostamente envolvidos com uns e outros? Aparentemente, esses fatos podem ser tratados isoladamente, como se não tivessem conexão entre eles, cada um obedecendo a uma lógica específica. Poderiam, também, cair sob uma rubrica mais geral de completa ausência de moralidade púbica, o que já seria bastante revelador do momento que vivemos.


Caberia, no entanto, perguntar se não há aí uma questão de ordem estrutural que se faz presente em cada um desses fatos, que sempre ressurgem sob a forma de "escândalos". Mas é tal a sucessão de escândalos que alguns não parecem mais escandalizar, como se vivêssemos segundo uma rotina do escandaloso.


Os últimos anos têm sido a ocasião de desenvolvimento de uma espécie de capitalismo de Estado com tinturas socialistas, alicerçado numa aliança entre sindicatos de trabalhadores e grandes grupos empresariais. Mais particularmente no governo Lula, esse processo foi intensificado, criando toda uma rede de privilégios e favorecimentos que terminou por distorcer as relações de mercado propriamente ditas. De um lado, o discurso contra o "mercado"; de outro, o favorecimento explícito de alguns agentes de mercado, encobertos sob o manto da intervenção "pública", quando de pública tem muito pouco.


Lula criou para si a imagem do vencedor que tudo pode, atendendo uns e outros segundo as circunstâncias, sem nenhuma preocupação com seu efeito sobre as instituições republicanas. De parte de grandes grupos empresariais e bancários, foi criada uma teia de relações pessoais que lhes concedeu e continua a conceder os mais diferentes tipos de benefícios. A justificativa, como sempre, é a da redução do crescimento do PIB, como se os problemas estruturais fossem assim abordados. Outras medidas estruturais nem são aventadas, como redução uniforme de impostos para todos os setores ou aumento dos investimentos públicos via redução do custo da máquina estatal.


Acontece que tal tipo de intervenção não é política nem moralmente neutra, expondo problemas estruturais do Estado. Por exemplo, politicamente, benefícios são criados para grupos empresariais que, depois, acabam contribuindo financeiramente para os partidos governamentais que dão sustentação a essa forma de favorecimento. Moralmente, o ambiente torna-se insalubre. Salta aos olhos que uma consequência é o aumento da corrupção e o pagamento de propinas, que terminam entrando no modo mesmo de funcionamento da economia e do Estado.


Uma relação capitalista, de mercado no sentido estrito do termo, funciona tendo como base a impessoalidade dos agentes econômicos, pautados por leis e formas tributárias que valem igualmente para todos. Ou seja, essas leis e regras não favorecem ninguém, os benefícios de cada agente econômico dependendo de seu desempenho, conhecimento e competitividade. Relações de mercado caracterizam-se por ser impessoais. O capitalismo de Estado, contudo, retorna a formas mercantilistas de condução da economia, personalizando politicamente as relações econômicas.


Cachoeira, nesse sentido, não é um acidente de percurso, mas um efeito desse capitalismo de Estado. Sua posição é particularmente significativa, pois ele se insere na interseção de parlamentares, poder público, favorecimentos particulares, contravenção e relações com grandes empresas - no caso, a Delta. De repente, os tentáculos dessa rede da contravenção se estendem para vários Estados e para a União, tecendo uma teia de corrupção, privilégios e esfacelamento dos laços institucionais e morais. Um indivíduo desse quilate se torna personagem nacional. A perversidade parece não conhecer, aqui, nenhum limite.


Convém assinalar, neste ponto, que o governo Dilma tem procurado mexer com esses efeitos, enquanto no governo Lula nem combatidos eles eram. O novo governo procura se dissociar deles, o anterior com eles compactuava. Há, portanto, uma sinalização de mudança envolvida, que poderá, talvez, no futuro traduzir-se por uma transformação maior. Embora o combate aos efeitos seja altamente meritório, a abordagem das causas é mais do que nunca necessária.


O caso dos governadores supostamente envolvidos seja com o grupo de Cachoeira, seja com a Delta, seja ainda com ambos, mostra bem as relações de tipo pessoal usadas para favorecimentos de alguns, em que a fronteira entre o lícito e o ilícito começa a desaparecer. O atendimento de demandas particulares não resistiria a um teste de universalização, isto é, a sua contribuição para o bem coletivo.


Nessa perspectiva, é imprescindível que tais fatos continuem a aparecer publicamente, produzindo na opinião pública uma situação tal de descontentamento que se possa concretizar eleitoralmente. O descalabro moral pode ter repercussões políticas. Bom signo disso é que a ética na política se está tornando novamente uma questão nacional. E a liberdade de imprensa e dos meios de comunicação é uma condição para que essa transformação se possa operar.


A questão maior, porém, consiste em desatar um nó de tipo estrutural, pois se isso não for feito o combate aos efeitos pode tornar-se um trabalho de Sísifo, sempre repetindo o mesmo esforço, jamais chegando ao fim. De um lado, o fortalecimento das intervenções governamentais na economia, favorecendo determinados setores e grupos econômicos, a expensas dos demais, cria "regras" particulares que não só distorcem as relações de mercado, como enfraquecem as relações institucionais e a moralidade pública. De outro, o combate às práticas que são consequência dessas relações se confronta com seu incessante ressurgimento, mudando apenas os personagens. Só desatando esse nó poderá o País descortinar um novo horizonte.
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COMENTÁRIO: Nunca esquecendo que, mesmo sem conseguir levar a pedra ao topo, pelo menos Sísifo ganha músculos... Ou seja, não devemos esmorecer, porque, no mínimo, acumulamos força e indignação.

MEU INFERNO MAIS ÍNTIMO
Luiz Felipe Pondé, Folha de SP - 4 de junho de 2012


Um jovem rabino, angustiado com o destino da sua alma, conversava com seu mestre, mais velho e mais sábio, em algum lugar do Leste Europeu entre os séculos 18 e 19.


Pergunta o mais jovem: "O senhor não teme que quando morrer será indagado por Deus do porquê de não ter conseguido ser um Moisés ou um Elias? Eu sempre temo esse dia".


O mestre teria respondido algo assim: "Quando eu morrer e estiver na presença de Deus, não temo 
que Ele me pergunte pela razão de não ter conseguido ser um Moisés ou um Elias, temo que Ele me pergunte pela razão de eu não ter conseguido ser eu mesmo".


Trata-se de um dos milhares de contos hassídicos, contos esses que compõem a sabedoria do hassidismo, cultura mística judaica que nasce, "oficialmente", com o Rabi Baal Shem Tov, que teria nascido por volta de 1700 na Polônia.


A palavra "hassidismo" é muito próxima do conceito de "Hesed", piedade ou misericórdia, que descreve um dos traços do Altíssimo, Adonai ("Senhor", termo usado para se referir a Deus no judaísmo), o Deus israelita (que, aliás, é o mesmo que "encarnou" em Jesus, para os cristãos).


Hassídicos eram conhecidos como "bêbados de Deus", enlouquecidos pela piedade divina (e pela vodca que bebiam em grandes quantidades para brindar a vida...) que escorre dos céus para aqueles que a veem. 


São muitas as angústias de quem acredita haver um encontro com Deus após a morte. Mas ninguém precisa acreditar em Deus ou num encontro como esse para entender a força de uma narrativa como esta: o primeiro encontro, em nossa vida, que pode vir a ser terrível, é consigo mesmo. Claro que se Deus existe, isso assume dimensões abissais.


Para além do fato óbvio de que o conto fala do medo de não estarmos à altura da vontade de Deus, ele também fala do medo de não sermos seres morais e justos, como Moisés e Elias, exemplos de dois grandes "heróis" da Bíblia hebraica. Ser como Moisés e Elias significa termos um parâmetro moral exterior a nós mesmos que serviria como "régua".


A resposta do sábio ancião ao jovem muda o eixo da indagação: Deus não está preocupado se você consegue seguir parâmetros morais exteriores, Deus está preocupado se você consegue ser você mesmo. 


Não se trata de pensar em bobagens do tipo "Deus quer que você seja feliz sendo você mesmo" como pensaria o "modo brega autoestima de ser", essa praga contemporânea. Trata-se de dizer que ser você mesmo é muito mais difícil do que seguir padrões exteriores porque nosso "eu" ou nossa "alma" é nosso maior desafio.


Enfrentar-se a si mesmo, reconhecer suas mazelas, suas inseguranças e ainda assim assumir-se é atravessar um inferno de silêncio e solidão. Ninguém pode fazer isso por você, é mais fácil copiar modelos heroicos, por isso o sábio diz que Deus não quer cópias de Moisés e Elias, mas pessoas que O enfrentem cara a cara sendo quem são.


Podemos imaginar Deus perguntando a você se teve coragem de ser você mesmo nos piores momentos em que ser você mesmo seria aterrorizante. Aí está o cerne da "moral da história" neste conto.


Noutro conto, um justo que morre, chegando ao céu, ouve ruídos horrorosos vindo de uma sala fechada. Perguntando a Deus de onde vem aquele som ensurdecedor, Deus diz a ele que vá em frente e abra a porta do lugar de onde vem a gritaria. Pergunta o justo a Deus que lugar seria aquele. Deus responde: "O inferno". Ao abrir a porta, o justo ouve o que aqueles infelizes gritavam: "Eu, eu, eu...".


Ao contrário do que dizia o velho Sartre, o inferno não são os outros, mas sim nós mesmos. Numa época como a nossa, obcecada por essa bobagem chamada autoestima, ocupada em fazer todo mundo se achar lindo e maravilhoso, a tendência do inferno é ficar superlotado, cheio de mentirosos praticantes do "marketing do eu".


Casas, escritórios, academias de ginásticas, igrejas, salas de aula, todos tomados pelo ruído ensurdecedor do inferno que habita cada um de nós. O escritor católico George Bernanos (século 20) dizia que o maior obstáculo à esperança é nossa própria alma. Quem ainda não sabe disso, não sabe de nada.