20 dezembro 2006

QUE TIPO DE ANO TIVEMOS?


Chegam a ser enfadonhos os constantes e repetidos alertas sobre a importância da Educação para o desenvolvimento, a redução das desigualdades, a inclusão dos deserdados, enfim, para que alcancemos o que grande parte dos outros países emergentes já está conseguindo, graças a uma opção clara pela Educação. Porém, como dizia o escritor francês André Gide: “Todas as coisas já foram ditas, mas, como ninguém escuta, é preciso sempre recomeçar”.




No seu livro “Degraus”, da primeira década do século passado, o poeta e escritor alemão Christian Morgenstern dava um sábio conselho: “O melhor método de educação para uma criança é arranjar-lhe uma boa mãe”. Decorridos cem anos, no início deste século uma pesquisa internacional revelou que crianças nascidas em famílias com grau universitário, que cultivam o hábito da leitura e ajudam os filhos nas tarefas escolares tinham suas chances de sucesso multiplicadas.

Também já se transformou num truísmo a constatação de que não há melhor e mais eficaz método de controle de natalidade do que a Educação. O simples fato de a mulher ser mais bem informada dos seus direitos, métodos disponíveis, conseqüências advindas da maternidade, dificuldades financeiras resultantes de suas gestações a torna mais cautelosa nas suas decisões. Também a elevação das suas exigências em relação ao futuro da prole funciona como um poderoso freio, assim como o desencantamento do mundo, propiciado pelas luzes da racionalidade, espanta o velho espectro do fatalismo: “É Deus quem quer!”.
Há poucos dias, os telejornais noticiaram o resultado de uma pesquisa que, mais uma vez, comprova a crueldade representada pela ignorância. Pouquíssimos pobres compram remédios genéricos, largamente utilizados pela classe média. A razão? Desinformação, desconhecimento, deseducação! Um exemplo de política social estrutural, que deveria beneficiar os mais pobres, sem transformá-los em escravos dependentes, mas dando-lhe um Direito contínuo e não sujeito a explorações politiqueiras, acabou servindo à classe média, que sabe decodificar os sinais, que conhece os códigos embutidos nessa operação.

Até por ter tudo a ver com o tema acima abordado, não posso deixar de comentar, também, o absurdo atentado praticado pelos nossos parlamentares, que pretendiam se autoconceder um aumento de 90% em seus vencimentos.
Felizmente, alguns poucos e dignos deputados reagiram e fizeram com que o STF considerasse inconstitucional aquela aberração, verdadeiro acinte contra os cidadãos trabalhadores e pagadores de impostos.
No entanto, uma grave questão permanece solta no ar: de que vale o empenho e a luta por fazer das nossas escolas verdadeiras usinas de cidadãos honrados e conscientes se o exemplo que lhes vem do alto é, geralmente, moralmente pervertido, eticamente corrompido?

Sobre isso, o músico, filósofo, teólogo, médico e missionário alemão Albert Schweitzer, ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1952 e um dos precursores da Bioética, era cirúrgico, preciso, certeiro: “Dar o exemplo não é a melhor maneira de influenciar os outros. É a única”.


Há poucos dias, Lula recebeu o título de “Homem do Ano” da revista Istoé, aquela mesma que alugou suas páginas para que os “aloprados” petistas plantassem uma denúncia falsa com o objetivo de melar a eleição paulista. No caso, cabe como uma luva a boutade: “Ele foi eleito o Homem do Ano. Para você ver que tipo de ano tivemos!”.

A conclusão pessimista é de que “a mais árdua tarefa das crianças hoje em dia é aprender boas maneiras sem ver nenhuma”, frase atribuída a Fred Astaire, que se, de fato, for seu autor, agrega mais uma à sua coleção de virtudes.

A conclusão otimista é de que a sociedade, que às vezes parece adormecida, enfeitiçada, entorpecida, como se viu na reeleição de Lula e de tantos mensaleiros, vez por outra resolve dar um basta! ao excesso de canalhices que nos infelicita.
Adeus, 2006! Já vais tarde!
Bem-vindo, 2007!

13 dezembro 2006

GIPSÓFILAS & JABACULÊS


Todos os anos, em meados de abril, milhares de pessoas invadem os bosques franceses em busca daquela delicada flor branquinha, com que se costuma rechear ramalhetes, chamada gipsófila. É tradição naquele país presentear-se os amigos com ramos dessa flor no feriado de 1º de maio, Dia do Trabalho.

Inteligentemente, o Partido Comunista Francês se aproveitava desse costume para mobilizar seus militantes em torno da colheita, cuja renda revertia integralmente para os seus cofres. Segundo informações do próprio PCF, em 2004 a colheita teria produzido um milhão de pequenos vasos, que teriam gerado uma receita de Є$ 1,5 milhão de euros (R$ 5,4 milhões de reais).

Tudo muito bonito e poético, não fosse a revista francesa "Capital" resolver ouvir um especialista no cultivo de gipsófila que garantiu ser impossível colher tantas flores em tempo tão exíguo. Diante dessa informação, e depois de minuciosa investigação, reportagem de capa da edição de fevereiro de 2004 concluía que a gipsófila era, simplesmente, a mais poética das formas de se lavar dinheiro sujo.

Tipicamente francês, eu diria. Afinal, foi um conterrâneo, o moralista La Rochefoucauld, quem cunhou a famosa expressão "a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude".

Por aqui, também já houve um tempo em que o assovio da poesia e o véu da hipocrisia ocultavam os vícios, simulando a virtude. Era o tempo dos broches, das camisetas, dos bonés que, como a inocente gipsófila, funcionavam como lavanderia dos recursos amealhados em prefeituras companheiras.

Hoje, porém, os escrúpulos foram mandados às favas, optando-se pelo cinismo debochado, pelo escracho escancarado, pela esculhambação desabrida. Não há mais preocupação sequer com as aparências, apenas com os resultados.

A eleição presidencial deste ano teve uma escandalosa quantidade de vícios que macularam o processo eleitoral, distribuindo benesses claramente programadas e agendadas com esse objetivo.

Ou terá sido coincidência que, depois de três anos de reajustes pífios, a elevação do salário mínimo este ano tenha sido de 16,7% para uma inflação de cerca de 5%?

Ou terá sido coincidência a antecipação para setembro do pagamento de metade do 13º salário dos aposentados e pensionistas do INSS?

Ou terá sido coincidência a concessão de reajustes a mais de 110 mil servidores públicos, a um custo de R$ 5,2 bilhões, inclusive atropelando critérios como o da equivalência salarial com o setor privado?

Ou terá sido coincidência a ampliação do Bolsa-Família, cujo número de beneficiárias passou de 8,3 milhões para 11,1 milhões só neste ano?

Pelo andar da carruagem, parece que todos esses malfeitos, além das doações ilegais, serão perdoados pelos nossos tribunais, impondo-nos mais 4 longos anos de desgoverno. Mas que fique bem claro que o que se praticou nessa campanha foi o velho “é dando que se recebe”, o carcomido jabaculê, vulgo jabá, fantasiados de "tudo pelo social".

Voltando aos franceses, era neles que pensava o guru petista Carlito Maia quando dizia "quando a esquerda começa a contar dinheiro, converte-se em direita". Felizmente, seis meses antes do início da era Lula ele preferiu juntar-se aos seus velhos amigos Henfil e Betinho. Privou-se do desconforto de ver confirmadas as suas imprecações contra a esquerda francesa justamente pelas mãos dos seus fiéis companheiros, a quem doara a criação do slogan “oPTei”.

Se vivo fosse, certamente desoptaria, por coerência e aversão à hipocrisia.















07 dezembro 2006

SÓ SEI QUE NADA SEI


Às vésperas do século XXI, pipocaram no mundo inteiro listas de todos os tipos e gêneros, elegendo os maiores e melhores do século XX em todas as áreas. Os resultados, em geral, mereciam boa aceitação quando se tratava de questões técnicas, tecnológicas ou científicas e muita contestação quando se referiam a obras de arte. Compreensível, afinal, uma é, de fato, mais objetiva, outra, sem dúvida, mais subjetiva.


Lembro-me de ter lido, com enorme surpresa, a relação das obras-primas da literatura alemã do século XX. Para meu espanto, na opinião dos 33 autores, 33 críticos e 33 germanistas mais importantes daquele país o melhor romance alemão do século que findava era "O Homem sem Qualidades", de um austríaco (?) chamado Robert Musil.

Senti-me profundamente ignorante, pois jamais havia sequer ouvido falar nesse senhor Musil, quanto mais lido alguma obra sua. Quanto ao fato de ter sido eleito o mais importante autor alemão do século XX, bem, aí já era uma quase desmoralização de alguém que se julgava culto (leitor de Goethe, Kafka e Thomas Mann) e bem informado (ávido leitor de jornais e revistas desde os 14 anos).


Humilhante!


Evidentemente, Goethe não era concorrente, por ser do século 19. E se fosse, teria de ser hors concours. Mas e os meus velhos conhecidos e preferidos Thomas Mann e Kafka?


O pior de tudo é que Musil não só aparecia em primeiro lugar, mas com larga vantagem sobre o segundo colocado, "O Processo", de Kafka. O terceiro da lista era "A Montanha Mágica", de Thomas Mann, que, por sinal, emplacou mais dois entre os dez - "Os Budenbrook", sétimo colocado, e "Doutor Fausto", em décimo lugar.


Vez por outra, esse tipo de tapa na cara é extremamente bem-vindo, pois nos faz ver como somos pequenos diante da vastidão da obra humana e da infinitude da obra divina. Traz-nos à lembrança o princípio socrático da sabedoria – “Só sei que nada sei” -, que nos leva à humilde atitude de tentar superar o saber enganoso, baseado em idéias pré-concebidas.


Ao terminar o livro, com seis anos de atraso, justificado pela preguiça de enfrentar suas 1273 páginas, entendi os motivos que levaram muitos críticos a considerar este austríaco um dos mais importantes escritores da primeira metade do século XX, comparável a Proust e Joyce. Seu talento psicológico para decifrar a alma humana e as dificuldades no enfrentamento com a vertigem do vazio da era moderna, é incomparável.


Para Musil, as qualidades cristalizaram-se sem autoridade para tanto. Cada um se apega a uma personagem particular – professor, operário, empresário - e seu universo de signos e significantes, fechando-se a tudo o que a vida tem de dissonante, criativo e espontâneo.


Contra isso se contrapõe o homem sem qualidades, que, desembaraçando-se de todas as convenções, posturas sociais, conteúdos intelectuais e morais, máscaras de identidade, sentimentos e emoções difundidos em seu entorno, sexualidade canalizada nos diques do socialmente aceito, volta ao grau zero da disponibilidade e constrói sua vida se opondo a todo automatismo e a todo lugar-comum da inteligência, da vida afetiva e do comportamento.


O homem sem qualidades de Musil reivindica a própria disponibilidade, sem prévias adesões compulsórias a supostas causas, sagradas ou não, a determinadas normas de conduta, ditadas como eternas e pensadas para reger a sucessão de gerações, supostamente idênticas umas às outras.


O homem sem qualidades representaria não uma forma de egoísmo ou um modo de virar as costas para a realidade, mas uma saudável desconfiança quanto ao consabido, ao irrefletido, ao imposto pela esmagadora inércia do mundo.


O homem sem qualidades é o protótipo do homem moderno, um homem de possibilidades, caracterizado pela abertura com relação a todos os atos possíveis da experiência e da interpretação de mundo.


O homem sem qualidades é um homem infinitamente possível, sempre outro, aberto a qualquer evolução em potencial.


O homem sem qualidades contribui com as reflexões sobre a crise e o estatuto do sujeito, bem com estimula a desconfiança sobre todas as ideologias que exaltam, sem maior precisão, seus discutíveis méritos.


Nesses tempos em que a burrice ideológica e as tentações totalitárias transformam a América Latina num arquipélago do atraso, ler esta obra-prima é um bálsamo para almas aflitas e um excelente exercício de desintoxicação mental.


Recomendo.