07 dezembro 2006

SÓ SEI QUE NADA SEI


Às vésperas do século XXI, pipocaram no mundo inteiro listas de todos os tipos e gêneros, elegendo os maiores e melhores do século XX em todas as áreas. Os resultados, em geral, mereciam boa aceitação quando se tratava de questões técnicas, tecnológicas ou científicas e muita contestação quando se referiam a obras de arte. Compreensível, afinal, uma é, de fato, mais objetiva, outra, sem dúvida, mais subjetiva.


Lembro-me de ter lido, com enorme surpresa, a relação das obras-primas da literatura alemã do século XX. Para meu espanto, na opinião dos 33 autores, 33 críticos e 33 germanistas mais importantes daquele país o melhor romance alemão do século que findava era "O Homem sem Qualidades", de um austríaco (?) chamado Robert Musil.

Senti-me profundamente ignorante, pois jamais havia sequer ouvido falar nesse senhor Musil, quanto mais lido alguma obra sua. Quanto ao fato de ter sido eleito o mais importante autor alemão do século XX, bem, aí já era uma quase desmoralização de alguém que se julgava culto (leitor de Goethe, Kafka e Thomas Mann) e bem informado (ávido leitor de jornais e revistas desde os 14 anos).


Humilhante!


Evidentemente, Goethe não era concorrente, por ser do século 19. E se fosse, teria de ser hors concours. Mas e os meus velhos conhecidos e preferidos Thomas Mann e Kafka?


O pior de tudo é que Musil não só aparecia em primeiro lugar, mas com larga vantagem sobre o segundo colocado, "O Processo", de Kafka. O terceiro da lista era "A Montanha Mágica", de Thomas Mann, que, por sinal, emplacou mais dois entre os dez - "Os Budenbrook", sétimo colocado, e "Doutor Fausto", em décimo lugar.


Vez por outra, esse tipo de tapa na cara é extremamente bem-vindo, pois nos faz ver como somos pequenos diante da vastidão da obra humana e da infinitude da obra divina. Traz-nos à lembrança o princípio socrático da sabedoria – “Só sei que nada sei” -, que nos leva à humilde atitude de tentar superar o saber enganoso, baseado em idéias pré-concebidas.


Ao terminar o livro, com seis anos de atraso, justificado pela preguiça de enfrentar suas 1273 páginas, entendi os motivos que levaram muitos críticos a considerar este austríaco um dos mais importantes escritores da primeira metade do século XX, comparável a Proust e Joyce. Seu talento psicológico para decifrar a alma humana e as dificuldades no enfrentamento com a vertigem do vazio da era moderna, é incomparável.


Para Musil, as qualidades cristalizaram-se sem autoridade para tanto. Cada um se apega a uma personagem particular – professor, operário, empresário - e seu universo de signos e significantes, fechando-se a tudo o que a vida tem de dissonante, criativo e espontâneo.


Contra isso se contrapõe o homem sem qualidades, que, desembaraçando-se de todas as convenções, posturas sociais, conteúdos intelectuais e morais, máscaras de identidade, sentimentos e emoções difundidos em seu entorno, sexualidade canalizada nos diques do socialmente aceito, volta ao grau zero da disponibilidade e constrói sua vida se opondo a todo automatismo e a todo lugar-comum da inteligência, da vida afetiva e do comportamento.


O homem sem qualidades de Musil reivindica a própria disponibilidade, sem prévias adesões compulsórias a supostas causas, sagradas ou não, a determinadas normas de conduta, ditadas como eternas e pensadas para reger a sucessão de gerações, supostamente idênticas umas às outras.


O homem sem qualidades representaria não uma forma de egoísmo ou um modo de virar as costas para a realidade, mas uma saudável desconfiança quanto ao consabido, ao irrefletido, ao imposto pela esmagadora inércia do mundo.


O homem sem qualidades é o protótipo do homem moderno, um homem de possibilidades, caracterizado pela abertura com relação a todos os atos possíveis da experiência e da interpretação de mundo.


O homem sem qualidades é um homem infinitamente possível, sempre outro, aberto a qualquer evolução em potencial.


O homem sem qualidades contribui com as reflexões sobre a crise e o estatuto do sujeito, bem com estimula a desconfiança sobre todas as ideologias que exaltam, sem maior precisão, seus discutíveis méritos.


Nesses tempos em que a burrice ideológica e as tentações totalitárias transformam a América Latina num arquipélago do atraso, ler esta obra-prima é um bálsamo para almas aflitas e um excelente exercício de desintoxicação mental.


Recomendo.

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