11 julho 2006

SALVE, REINALDO!

No momento em que o combativo jornalista Reinaldo Azevedo é atingido pelos tentáculos da malta que infesta a Nação, para dar-lhe meu apoio e mostrar-lhe como continua sendo vital a sua luta, selecionei trechos de dois dos maiores discursos já proferidos na Câmara dos Deputados, num tempo em que lá despontavam luminares da cultura nacional. Com ligeiras adaptações [entre colchetes], ambos os pronunciamentos poderiam ser feitos hoje.



Deputado Afonso Arinos à esquerda de Jânio
AFONSO ARINOS
O discurso abaixo foi um dos mais duros e veementes já proferidos no Parlamento brasileiro. Nele, o líder da oposição fala a Getúlio Vargas, “como presidente e como homem”, para pedir-lhe que renuncie à Presidência da República. Era o dia 9 de agosto de 1954. Quatro dias antes, o jornalista Carlos Lacerda, inimigo de Vargas, fora ferido em um atentado na rua Toneleros, em Copacabana, no Rio de Janeiro, no qual morreu o major da Aeronáutica Rubem Vaz. As investigações, conduzidas por oficiais da FAB, logo revelaram que por detrás do crime estavam elementos da guarda pessoal do presidente. É nesse clima que Arinos sobe à tribuna da Câmara e, de improviso, profere o discurso demolidor. As semanas seguintes seriam dramáticas. Pressionado pelas Forças Armadas a renunciar, Getúlio matou-se com um tiro no peito na manhã de 24 de agosto.



Há uma tradição legendária que declara que, no momento em que a maior justiça se encontrou com a maior injustiça e no dia em que o erro supremo se defrontou com a suprema verdade, nesse dia o juiz, o interessado na justiça, o representante de poder estatal, que era Pôncio Pilatos, em face da perturbadora fúria, em face do transviamento das multidões arrebatadas, esquecendo-se dos deveres morais que incumbiam a sua pessoa e dos misteres políticos que incumbiam a seu cargo, respondeu, a uma advertência, com estas palavras melancólicas: "Mas, o que é a verdade?".
A resposta a esta pergunta tem sido inutilmente procurada pelos pensadores e pelos filósofos. O que é a verdade? Para cada um ela se apresenta para cada além, para cada esperança, para cada paixão, para cada interesse. Para cada além, para cada esperança a verdade se reveste de roupagens enganosas. Ninguém jamais formulou esta pergunta em relação à negação da verdade, ninguém perguntou jamais: "O que é a mentira?".
Ao Sr. Presidente respondo que, se não é possível saber o que é a verdade, é perfeitamente possível saber-se o que não é a mentira.
Ele nos acusa de estarmos proferindo mentiras contra seu Governo. Ele investe contra nós, declarando que da voz do povo sai um clamor de mentiras. E eu pergunto: será mentira [a denúncia do Procurador-Geral da República, indiciando 40 envolvidos no escândalo do Mensalão, classificado de “organização criminosa”, cujo núcleo coordenava o esquema, a partir do Palácio do Planalto]? Serão mentiras os corpos dos assassinados [em Santo André]? Será mentira [a quebra do sigilo do caseiro Francenildo]? Será mentira [a montagem de uma quadrilha para perpetuar-se no poder]? Será mentira [que Paulo Okamotto – o doador universal - seja o provedor oficial da família Lula da Silva]? Serão mentira [os dólares na cueca]? Serão mentira [as alegres festinhas de Jeany Mary Corner]?
Será mentira [o Land Rover do Silvinho]? Será mentira [que José Genoíno ultrapassou, de longe, o limite da irresponsabilidade]? Será mentira [o exílio de familiares de Celso Daniel, por sucessivas ameaças de morte]? Será mentira a pedra que rola pelo despenhadeiro do descrédito? Será mentira o desprestígio das autoridades, que vão de cambulhada, com o fracasso da administração? Será mentira que os rios do descrédito e do opróbrio, será mentira que os rios e ribeiros que descem as colinas de nossa vida pública se encontrem, convergem e vão de roldão para a desagregação e para a desmoralização deste governo falido? Será mentira que o País tenha assistido, de algum tempo a esta parte aos mais graves abalos na sua vida e em sua honra? Será mentira [que o marqueteiro do Banco do Brasil, Henrique Pizzolato, desviou recursos para o PT]? Será mentira [que o Banco Popular, do Ivan Guimarães, gastou mais em publicidade do que em empréstimos populares]? Será mentira o espetáculo vergonhoso da submissão de nossa política internacional aos ditames e caprichos de um ditador platino?
Serão acaso mentiras tantas pequenas misérias e pequenas infâmias? Serão mentirosas, ao lado da corrupção nacional, [a conta Dusseldorf no exterior e o reconhecimento de Duda Mendonça do Caixa 2 na campanha de Lula]? Será mentira tudo isso? Estaremos nós vivendo num meio de realidades ou de sonhos? Ou será ele o grande mentiroso, ou será ele o grande enganado ou será ele o pai supremo de fantasmagoria e da falsidade?
Nós não mentimos, Sr. Presidente. O que nós fazemos é conter a verdade, é reprimi-la dentro dos limites do nosso bom senso e do nosso patriotismo. É não permitir, é aconselhar, é insistir para que essa verdade não exploda na desordem.
A sucessão dos acontecimentos que têm golpeado a sensibilidade nacional atingiu, de fato, a limite insuperável; chegou, efetivamente, às fronteiras e aos lindes do inimaginável.
Se eu tivesse a leviandade do Senhor Presidente da República, ao nos acusar infundadamente de mentirosos; se eu quisesse retrucar com essa leviandade incompatível com a magnitude e com a importância do seu cargo, eu teria muito mais razão do que Sua Excelência, que nos chamou de mentirosos, para responder que, dos fatos chegados ao meu conhecimento, se poderia perfeitamente concluir que as investigações não pararam mais no Palácio, que as investigações transpuseram as portas do mesmo Palácio, que as investigações vão além das salas públicas do Palácio, alcançaram os próprios aposentos da intimidade presidencial.

Eu estou, sob qualquer risco, enfrentando qualquer ameaça, olhando de frente qualquer tentativa de intimidação, qualquer apodo, qualquer injúria, qualquer crime, cumprindo o meu dever de brasileiro, dizendo ao povo do Brasil que existe no Governo deste País uma malta de criminosos e que os negócios da nossa República estão sendo conduzidos ou foram conduzidos até agora sob a guarda de egressos das penitenciárias ou pretendentes às cadeias.
Eu lhe digo: Presidente, houve um momento em que Vossa Excelência encarnou, de fato, as esperanças do povo; houve um momento em que Vossa Excelência, de fato, se irmanou com as aspirações populares. Mas eu digo a Vossa Excelência: preze o Brasil que repousa na sua autoridade; preze a sua autoridade, sob a qual repousa o Brasil. Tenha a coragem de perceber que o seu Governo é, hoje, um estuário de lama; observe que os porões do seu palácio chegaram a ser um valhacouto da sociedade. Alce os olhos para o seu destino e observe as cores da bandeira, e olhe para o céu, a cruz de estrelas, que nos protege, e veja como é possível restaurar-se a autoridade de um governo que se irmana com criminosos, como é possível restabelecer-se a força de um Executivo caindo nos últimos desvãos da desconfiança e da condenação.


CARLOS LACERDA
No dia 7 maio de 1957, ameaçado de cassação, o deputado Carlos Lacerda proferiu um discurso que durou 10 horas e entrou para a história.

[Sou] testemunha de um tempo de subversão de valores, no qual, como na sátira de George Orwell, fala-se em liberdade para matá-la, em democracia para destruí-la, em legalidade, para negá-la em sua própria essência. As palavras adquirem sentido oposto ao seu significado, e os homens afetam sentimentos nobres, para justificar, na perplexidade das idéias, a política dos mais baixos instintos.
Parece que uma estranha circunstância acompanha estes episódios, e que tudo que nos acontece ganha, na boca de presa dos nossos inimigos, nome trocado.
Uma democracia não se faz apenas com chamá-la por este nome, é necessário fundá-la na boa fé e não na astúcia, na honradez e não na fraude, porque o povo merece o melhor, e não o mais vil.
Aponto mais um crime, eis-me criminoso. Denuncio uma traição, chamam-me traidor.
Eis, então esta edição pachola do Procurador da Judéia, que não se lembrava, como no conto de Anatole France (esq.), do inocente que entregara à turba enfurecida dos provocadores, mas guardara a memória do ladrão que libertara, para celebrar o poderio de César, só este capaz de premiar ladrões e crucificar os que tivessem a ousadia de expulsá-lo dos templos da sua traficância.
Tudo, menos decepcionar a ilustre platéia que paga caro o lugar à sombra. O ladrão provecto, o contrabandista emérito, o abalizado agente de negócios escusos, o promissor emissário de novas cavações, o pioneiro infatigável das comissões copiosas, os promotores dos prazeres proibidos, os empresários dos gozos inefáveis, os letrados do insulto pago à linha, os pensionistas dos ócios indevidos. A turba que preliba a hora em que o enfurecimento do touro espicaçado, há de levar pelos ares, e fincar-lhe as guampas, ao temerário que ousou mostrar-lhe, nos passos da capa e das Madalenas, o valor da destreza e da coragem lúcida, sobre a brutalidade da besta que escarpa e urra.
Bem fraca na verdade anda a nação que precisar de remendos para se fingir de inteira, que arranhar a legalidade, para mostrar que o seu sangue ainda não se coagulou. A pobre nação, que ora se alui, ora se dilui, ora parece aprumar-se e logo bambeia.
[Anestesiando o povo, dele] faz instrumento da democracia pervertida, escravo da produção para a tirania.
O interesse do povo, em vez de uma razão, converte-se num pretexto para privar o mesmo povo de atender como bem entenda ao seu interesse. [O povo torna-se] uma massa inorganizada ou arregimentada em grupos rigorosamente controlados - no caso brasileiro, pela fraude, pelas autarquias, pelo monopólio do crédito, pelo empreguismo, [pelas bolsas-miséria], pela máquina educacional perra e guinchante.
Numa palavra, o direito passa a ser regido por interesses de grupo que, constituído o governo, dominam o estado, não pelas regras permanentes da razão e da revelação. Talvez alguns fiquem muito surpreendidos e até indignados se lhes dissermos isto, mas saibam que o Estado brasileiro hoje já se parece muito mais com o estado totalitário do que com uma estrutura democrática.
Vivemos no Brasil uma grande mentira. Quanto mais se fala em democracia, mais se proporciona ao povo demonstrações concretas de desapreço por ele, em sua dignidade, em sua honra, em seus interesses permanentes, em suas aspirações mais nobres. Os semimarxistas que governam o país esqueceram-se de que as forças morais condicionam, quando não determinam, as reações do povo.
Desprezaram o valor da crise moral. Esta vai liquidá-los. O que não seria mal, não existissem maiores sacrifícios à nação perplexa. O povo já percebeu que está sendo governado por "fariseus" da democracia, por "Tartufos" de uma pudicícia que, ao menor descuido, se desmanda.
O diálogo democrático transforma-se num monólogo de duas bocas, na qual uma diz o que quer e outra sequer pode dizer o que pensa. Não há quem possa resistir ao assalto da ignomínia, ao horror de tanta lama, do mar que agora invade a terra enxuta, que conseguíramos ressecar com as próprias mãos.
Estamos diante da ofensiva geral dos inimigos, que o são também do Tesouro Público e da esperança popular. Mas uma força possuo que me faz resistir a tudo isto, Sr. Presidente: é a confiança nos desígnios de Deus.
Quero saber até que ponto uma nação atura que dela escarneçam, a trocar o nome das coisas, dos sentimentos e das instituições. A falsificar os programas e inverter as doutrinas, a praticar a demagogia com linguagem Bíblica.
Ainda há ingênuos ou espertos que me julgam cheio de ódios porque sou veemente. Não Sr. Presidente. Sou veemente porque detesto a hipocrisia e o comodismo. Mas não tenho ódios porque sou livre. Quem odeia transforma-se no escravo do outro que ele odeia. Quem me odeia são os meus escravos de hoje, que não querem ser alforriados, porque têm o poder na mão, mas são escravos da cobiça e do ódio que os convertem em escravos da nossa vontade.
Detesto dizer que inspiro medo a certos homens Sr. Presidente, mas esta é a verdade. Felizmente, não aos homens de bem, apenas aos outros. E são esses outros os que se mexem, os que se movem, os que se danam e redanam, nessa dança de fórmulas, de pretextos, de processos, de perseguições, que me atormentam a inteligência, me castigam o corpo, mas me deixam limpo, lavado, o coração impenitente.
Procura-se a minha custa convencer o povo de que é inútil ter ideal, de que é vã toda esperança. Trata-se de esmagar um que parece forte, para que os mais fracos, os tímidos, os humildes, os sempre vencidos, os que não ousam, os que não insistem, os que não se agarram como eu à veemência, para não se entregarem ao desânimo, os que não forçam a violência do verbo e a perseverança na ação porque receiam ser inútil todo o esforço, afinal se entreguem, se abandonem, se deixem dominar.

(Ulysses na Caverna de Polyphemus, by Jacob Jordaens)
Partiu de Ulysses, aprisionado na gruta do Cíclope de um olho só no meio da testa. Ele viu que o gigante Polifemo devorava os seus companheiros, e se preparava para esmigalhá-lo em suas manoplas junto à boca voraz. Embriagou-o então e furou-lhe o olho único, o olho vigilante. Mas como tivera Ulysses o cuidado de dizer ao monstro que seu nome era ninguém, não acudiram os outros monstros ao apelo do Colosso quando, doido de ódio e de rancor, o gigante gritava que ninguém lhe havia furado o olho poderoso.
O governo é hoje, com seu monstruoso aparelho de propaganda, de deformação da verdade e de opressão econômica e política, o Cíclope que ousei desafiar nesta Odisséia. Ceguei-o de ódio, e ele procura esmagar-me com suas manoplas, ajudado por certas mãozinhas, habituadas a outro tipo de serviço. Mas ninguém acode ao monstro ferido só porque ele grita que ninguém lhe vazou o olho pérfido.
Perdendo ou ganhando, nós venceremos, porque os que defendemos a liberdade e a sobrevivência do Direito, somos ninguém. Nós somos a força desprezada. Nós somos os que constroem, com sacrifício e com risco, as vitórias definitivas, as únicas que Polifemo não conhecerá. Nós somos ninguém, porque somos o povo brasileiro.

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